Quando quero ouvir alguma coisa nova, cansada das músicas de sempre, olho as sugestões do genius do Itunes. Ele indica músicas baseadas no que a gente já comprou. Em razão da compra de uma música do Lobão dos anos 80 (Vida Louca Vida) o Genius me indicou Toda Forma de Poder, dos Engenheiros do Hawaii, mais ou menos da mesma época. Já conhecia a banda, onipresente nas rádios na segunda metade dos anos 80 e primeira dos anos 90 e conhecia a música também, mas nunca me atentei para o que dizia. Gostava mesmo era de Infinita Highway.
Comecei a ouvir a música, escrita em 1988, só para ficar encantada com o quanto é atual. E foi aí que pensei: arte de verdade transcende tempo e espaço e vale para qualquer época e situação.
O artista de verdade é aquele cuja obra transcende o tempo e o espaço, indo além do simples domínio da técnica.
Explico. Não importa onde e como a obra de arte foi feita, ela sempre terá algum significado, mesmo que seja séculos depois e em lugares até então desconhecidos. Claro que a obra pode ser datada e dizer respeito apenas a um contexto específico, limitado a um certo tempo e lugar. Na minha opinião, a obra de arte cujo significado se perde fora do contexto em que foi produzida não é uma verdadeira obra de arte mas apenas a produção de alguém que domina a técnica. A verdadeira transcende o contexto de sua criação. Foi assim com as peças de Shakespeare. Encontramos vários Yagos por aí e muitos Otelos dispostos a acreditar neles, por exemplo. Tentei assistir um programa do Jô Soares que passava nos anos 80 e normalmente eu não conseguia ver tudo porque terminava muito tarde e eu acordava cedo. Não achei a menor graça porque o humor era calcado na situação econômica (e muito ruim) do Brasil na época, com a filosofia do "apertar o cinto", recessão, pouco dinheiro. Tudo isso visto no auge da economia da época do governo do Lula não tinha graça nem muito sentido.O programa do Jô Soares serve de exemplo de uma obra feita dentro de um contexto específico.
A letra diz assim:
Eu presto atenção no que eles dizem
Mas eles não dizem nada
Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada
E eu começo a achar normal que algum boçal
Atire bombas na embaixada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer
Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta se transforma numa luta armada
A história se repete
Mas a força deixa a história mal contada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer
E o fascismo é fascinante
Deixa a gente ignorante e fascinada
É tão fácil ir adiante e se esquecer
Que a coisa toda tá errada
Eu presto atenção no que eles dizem
Mas eles não dizem nada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
"Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada."
Essa frase foi escrita antes da internet e das redes sociais. Podia ser dirigida a políticos (o tom desse verso assim como o da música é politizado) mas vale também para o vazio da fala que dá para notar em qualquer lugar. Falamos, falamos, falamos, falamos e não dizemos nada.
Por fala quero dizer a palavra falada mesmo, escrita mas também os posts infinitos nas redes sociais narrando banalidades do cotidiano (comer, tomar banho, academia, sair, trabalhar ou mostrar foto dos filhos fazendo todas aquelas coisas que qualquer criança normal faz) ou pensamentos que deveriam ser apenas isso, pensamentos. E continuamos falando.
"Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada".
Fidel não manda mais e Pinochet, além de deposto, já morreu. Mas o simbolismo é ótimo: dois ditadores, um de esquerda outro de direita que dão risada da inércia das pessoas em geral, não só na política mas para tudo. Até as manifestações que aconteceram ultimamente aqui e no mundo em geral são vazias: protesta-se por tudo e por nada. Cada protesto carece de foco e quem protesta parece não ter coragem de ir cuidar da própria vida, sem esperar que alguém (pai, mãe, marido, esposa, estado, governo) cuide de si. Afinal, para alguém ter condições de comprar algo vendido em um shopping, não basta gritar que tem direito a isso, tem que trabalhar para adquirir esse direito.
"E eu começo a achar normal que um boçal atire bombas na embaixada"
A banalização de tudo vai deixando todos nós anestesiados: violência, falta de caráter, corrupção, falta de ética, deslealdade, incongruência, vale tudo. E o que deveria ser esporádico, excepcional, horrendo (simbolizado por bomba na embaixada) passa a ser considerado normal porque acontece sempre.
"Se tudo passa talvez você passe por aqui e me faça esquecer tudo o que eu vi".
Dá mesmo vontade de esquecer tudo, só que isso não é possível. A idéia é aprendermos a lidar com o mundo tal como ele se apresenta e, ao mesmo tempo, modificar ou manter a única coisa que está ao nosso alcance: nossa atitude. Se tornar um boçal vai aumentar a boçalidade. Agir sem ética vai aumentar a falta de ética. E por aí vai.
"Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada"
O poder em si é vazio. Utilizado como a compensação de alguma carência dá mesmo a impressão de que satisfaz. Por pouco tempo. Daí porque quem tem poder quer sempre mais. Também proporciona uma sensação de segurança que é ilusória e temporária, porque segurança, tal como a entendemos, é relativa. Não há uma segurança absoluta, no sentido de permanente e concreta. Por isso que o poder é vazio, na medida em que nos dá a impressão de que temos o controle da nossa vida e da dos outros, controle que não existe de fato ou se existe é muito temporário.
"Toda forma de conduta se transforma em uma luta armada"
Forma de conduta pode ser um código moral, social ou uma religião. E quem está plenamente convicto disso acaba achando que o seu código de conduta não é apenas uma dentre várias opções possíveis mas a única. E costuma tentar impô-la aos outros usando armas das quais dispõe (espadas, fogueiras, bombas no próprio corpo, chantagem, culpa) e tudo vai virar uma guerra. Isso vale para ideologias, religião, moralismo.
"A história se repete mas a força deixa a história mal contada."
Há um disco da banda Extreme, de Boston que se chama III Sides to Every Story. Na parte interna da capa eles falam que há três lados para todas as histórias: o meu, o seu e a verdade. As coisas vão se repetindo sempre, seja na vida particular de cada um seja em âmbito planetário. Mas nunca sabemos mesmo como tudo de fato aconteceu porque quem ganhou a batalha ou a guerra (normalmente quem tem mais força) conta sua versão e ficam faltando as outras duas: a do outro lado e a verdade.
"O fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante e fascinada"
Toda forma totalitária tem um certo fascínio senão não cooptaria a colaboração de milhões. A questão foi muito bem explorada pelo psicanalista Erich Fromm em Escape From Freedom. Nesse livro ele analisa como as pessoas buscam regimes totalitários (assim como relacionamentos sado masoquistas) como uma tentativa (vã) de aliviar o sentimento de solidão e desamparo que a condição de ser livre e individual provoca. Mas o fascínio dessas ideologias e religiões tem um preço alto. Faz parte desse preço a perda da autonomia de pensar e decidir os próprios atos, porque normalmente as pessoas são seduzidas e mantidas nessa condição por muito tempo, muitas vezes a vida toda.
" É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada"
É o que todo mundo faz, alguns o tempo todo e com tudo, outros com algumas coisas e não com outras. Mas todo mundo tenta ignorar tudo o que está errado para conseguir viver a própria vida sem se sentir angustiado o tempo todo. Mas a negação é ruim. Jogar a sujeira debaixo do tapete não faz a sujeira sumir. Ignorar tudo o que está errado não conserta nada. E continuamos tendo que lidar com tudo isso de uma forma direta porque no final das contas somos afetados por tudo e por todos, mesmo que não pareça.
Gostei ainda mais da música agora, 25 anos depois, do que quando ouvi a primeira vez.
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