Não gosto de novelas nem de ópera. Com relação às primeiras, não tenho paciência para acompanhar uma trama que se arrasta por mais de seis meses e na qual personagens maniqueístas se degladiam até a morte (ou quase) ao longo da trama e apenas no último capítulo as coisas se resolvem às pressas. Já quanto à segunda, não gosto de canto lírico, porque me dá aflição (parece que alguém está espetando o cantor com uma agulha) e também não gosto do formato.
Ópera e novelas tem origem eminentemente popular. A ópera perdeu essa característica ao longo dos anos, tornando-se uma das formas musicais mais elitizadas e caras do mundo. A ópera, quando surgiu, era uma das modalidades de música profana, em oposição à música sacra. Contava histórias populares, de uma forma popular e para o povo. Era muito pop. Como as novelas.
A trama das novelas não é criada de início e mantida até o final. O autor ou autores criam uma espécie de esboço da história e a evolução dessa história vai atender ao gosto e expectativas do público. Personagens são eliminadas ou tem sua importância aumentada, de acordo com pesquisas de opinião; casais são formados ou desfeitos, se caem ou não na aceitação do público.
Em visita a Stratford Upon-Avon, na Inglaterra, onde nasceu e morreu Shakespeare (seus anos de autor e ator teatral foram vividos em Londres) comprei o livro Shakespeare's Restless World, de Neil McGregor (Penguin). Ele narra o contexto da época em que as peças de Shakespeare foram escritas através da análise de objetos da época, alguns encontrados em escavações feitas no local onde existiu o The Globe original (onde as peças eram encenadas no século XVI/XVII), além de citações de análises feitas por outros estudiosos, sobre o mesmo período.
E assim como os autores das novelas, Shakespeare dava ao seu público o que seu público queria ver. Seguindo caminho inverso à ópera, os teatros, na época dele, deixaram de ser elitistas como eram até então, principalmente no continente europeu: peças eram encenadas no castelo ou casa de um nobre ou de gente muito rica. Quem não fazia parte do staf da casa ou do círculo de amigos, não tinha acesso. Mas os teatros em Londres no século XVI eram populares e acessíveis a todas as camadas da população. O que diferenciava as classes sociais eram os lugares dentro do próprio teatro, como até hoje é, diga-se de passagem.
E o que o público de Shakespeare queria ver? Numa época em que a Itália (ou parte do que se tornaria a Itália mais tarde) era o que havia de mais sofisticado e moderno, boa parte das peças se passam lá, como Romeu e Julieta, O Mercador de Veneza, Othelo, Tudo Termina Bem, Coriolano, Cimbeline, Antônio e Cleópatra, Júlio César, Muito Barulho Por Nada, A Megera Domanada, Titus Andronicus, Dois Cavalheiros de Verona e Conto de Inverno. Se as execuções dos condenados, que ocorriam em praça pública, atraiam multidões, assassinatos e sangue escorriam das peças. Em algumas praticamente todos os personagens morrem, como MacBeth. Se todos os homens no século XVI carregavam alguma espécie de faca e brigas eram rotina, as peças tinham não só duelos mas, também, brigas de gangues rivais, como em Romeu e Julieta. Se a pior guerra da época não era travada alhures mas dentro da própria Inglaterra, contra a rebelde Irlanda, um só personagem, em todas as peças, era irlandês. Fazendo jus ao anti semitismo do século XVI (os judeus chegaram a ser expulsos do país em 1290), ele criou um personagem judeu de caráter odioso, em O Mercador de Veneza.
Além de dar ao seu público o que ele queria ver, Shakespeare se utilizava de notícias dos tablóides da época. Um deles era o Chronicles of England, Scotlande and Ireland. Quando uma mulher da Escócia, Agnes Sampson, confessou que ela e outras mulheres praticaram feitiçaria na tentativa de naufragar os navios que transportavam o rei da Escócia, Jaime VI, e sua noiva dinamarquesa, Anne, e foi queimada por isso, o episódio foi narrado no Chronicles e utilizado por Shakespeare na criação das bruxas que aparecem em MacBeth.
Hoje é comum ouvir-se reclamações a respeito da violência no cinema e na televisão. Mas não é a violência no cinema e TV que faz com que as pessoas se interessem por violência. É o fato de que as pessoas em geral gostam e ficam fascinadas com a violência que faz com a o cinema e a TV proporcionem entreterimentos violentos. Não gosto de violência em si, mas na condição de grande fã dos filmes do Quentin Tarantino, não estou em posição de julgar alguém que gosta. O público de Shakespeare também gostava de violência. E muito. Não precisava de assistir a lutas de boxe, UFC ou MMA pois havia as execuções públicas de criminosos e traidores, como eram considerados os padres católicos que atuavam undercover na segunda metade do século XVI. Alguns condenados eram enforcados, tirados da forca ainda vivos e muitas vezes conscientes, estripados, esquartejados e suas cabeças ficavam em estacas na Ponte de Londres. Além do espetáculo real, havia o sangue dos teatros e Shakespeare brindou sua platéia com muita violência e sangue: estrangulamentos, cabeças cortadas, enforcamentos.
Shakespeare dava ao público o que o público queria ver, tentava agradar aos soberanos, reproduzia os preconceitos da época em que viveu e buscava assunto para suas peças nos antepassados dos tablóides de hoje. Mas suas peças sobreviveram até hoje e ele tem lugar garantido no meio dos maiores escritores de todos os tempos porque foi além da mera intenção de agradar ao público e entreter. Reproduziu todos os sentimentos humanos, que continuam atuais e onipresentes hoje como eram no século XVI. Por isso, apesar de elementos datados em algumas de suas peças, elas são atemporais. Mas, ainda assim, não são tão diferentes das novelas.
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