sábado, 7 de março de 2015

O Doce Charme da Agonia Fidalga



José Eduardo de Almeida Leonel Ferreira



Li o Leopardo de Lampedusa pela segunda vez, após vinte e cinco anos. Nas semanas que seguiram dominou-me o ímpeto de decifrar a estranha identificação que, tal como muitos antes de mim, senti para com os personagens desta saga do lento descer da aristocracia rumo ao opróbrio da história.


Uma descida que vem temperada com a lassidão do calor siciliano, numa simbiose potente entre narrativa e seu clima atmosférico que Camus tinha atingido em "O estrangeiro". Das páginas viradas pinga suor, misturado com o tédio perene de Dom Fabrizio, que apenas aos grandes - assim fica nos parecendo-, é dado sentir.


No livro, ninguém compreende o Leopardo decaído. Não é difícil entender por que. Dentre tantas causas do fim do domínio da nobreza, uma das mais evidentes foi seu sistema de valores auto-referencial e compartimentado. Exclusivamente o berço dourado, acrescido de contínua e rígida educação, propiciava acesso e entendimento integral da complexa e intrincada tessitura de regras morais que tornava nobre um nobre. Em um tiro só: a nobreza, com tantos e imensos defeitos, tinha qualidades formidáveis, mas estes predicados somente eram apreciáveis pelos próprios aristocratas. Só eles tinham como gastar anos da vida para aprender códigos de conduta minudentes, quase sempre sutis demais e muitas vezes idiossincráticos. Muito bons em várias coisas que ninguém além deles mesmos estava municiado dos conhecimentos necessários para apreciar. Para Calogero, sogro do sobrinho (Tancredi) de nosso Dom Fabrizio, é ininteligível seu desprezo pelo dinheiro, sua capacidade de extrair prazer nas concessões (sempre claramente verticais e altaneiras) aos mais fracos. O Leopardo Fabrizio tem um orgulho visceral, que lhe sai pelos poros, mas, de forma estranha, este orgulho parece desconectado de seu ego. Orgulho de que poderia ser, senão das próprias qualidades, se pergunta o noveau riche? O burguês Calogero já cresceu viciado na crença no individualismo de quem é obrigado a fazer a si próprio e desconhece outra forma de empáfia que não aquela que se funda no próprio eu. Nutre, pois, estranhamento e perplexidade pelo desprezo genuíno que o nobre têm pelas coisas que, aos seus olhos pragmáticos e pouco poéticos, são as mais importantes. Pior mesmo - um verdadeiro tapa na cara-, é que este desprezo é acompanhado por comportamento eternamente blasè, por um ar entediado de quem já viu e sentiu tudo, algo inexpugnável para quem, burguês,  ainda crê ingenuamente na felicidade que virá  sempre certa e  contínua, na próxima esquina da caminhada rumo à cumulação de bens materiais.


Os nobres eram cruéis, varias vezes sanguinários e quase sempre indiferentes ao valor da vida humana. Mas eles sabiam disto, não o negavam e por isto os condenamos facilmente. Chegamos mesmo a cortar-lhes as cabeças sequencialmente em algumas ocasiões. Defeitos graves em réus confessos: tarefa fácil para juízes já ávidos por condenar. 


Dom Fabrizio sabe que anda para o cadafalso, mas tem um senso grave de seus deveres, e o maior deles é o de saber cair, sem lamúrias e mesmo sem tristeza. Sentir tristeza seria se permitir uma sensação vulgar o suficiente para sobrepujar em intensidade o tédio. Anda para o fim sem ter pressa, é certo, mas o faz com passo firme, sem hesitação. Hesitar, lamentar, seria a única derrota possível, e um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado, como Hemingway disse, talvez sem o saber, evocando um regra antiga e que não era sua. O fato da nova ordem ao seu redor não entender o velho aristocrata, nem valorizar a grandeza de seus atos finais, só o faz crescer em valor, regozijar-se perante si próprio, a única pessoa a quem tem de prestar contas. Fazer o certo pelo certo, como o velho Maia de Eça, a troco de recompensa alguma. E se o certo é traçar o rumo em direção ao nada, então a jornada, se feita de pé, se colore radiosamente de êxtase para o Leopardo, que agora sabe-se portador concreto do direito, solitário mas exclusivamente fidalgal, de decair com honra.


Nós, netos de Dons Calogeros, temos nostalgia do que nunca fomos. Assentada a poeira das revoluções burguesas, já sabemos valorizar algo naquele modo de vida antigo da nobreza, de um senso moral profundo e estético, embora tingido de sangue. Pensamentos totalmente antidemocráticos fixados em uma tempera colérica e algo cruel, mas exoticamente acompanhada do sopro inconfundível do belo. Aliás, bela tentativa, Tancredi, mas as coisas mudaram, de verdade. Boa noite, Dom Fabrizio

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