Há alguns dias atrás, um rapaz do Rio de Janeiro foi acorrentado a um poste, nu, por homens que se consideram justiceiros. O motivo? O rapaz seria ladrão de celulares em um bairro onde atuam esses “justiceiros”. O fato não teria tido tanta repercussão se a jornalista Rachel Sheherazade, no programa do qual participa no SBT, não tivesse dado declarações apoiando a conduta dos justiceiros.
A partir daí milhares de, principalmente na internet, manifestaram-se contra ou a favor do ato, defendendo a posição da jornalista e, de resto, dos justiceiros e outros, tão exaltados quanto, criticando o ato como sendo algo bestial.
É muito complicado condenar o ato e a conduta da jornalista, de um lado, e, por outro, não se deixar ficar ao lado de quem o considerou um ato de barbárie.
Explico.
O livro The Trial: A History from Sócrates to O. J. Simpson, escrito por Sadakat Kadri[1] lida com a seguinte questão: o que é um julgamento justo?
Sadakat Kadri , de acordo com a wikipedia, é inglês, advogado, escritor de viagens e jornalista.[2] O livro que escreveu conta a história de julgamentos que abrangem desde os realizados na Grécia, na época em que Sócrates viveu, passando por julgamentos medievais, tanto na Europa continental quando nas Ilhas Britânicas, além dos Estados Unidos. Há, ainda, menção a um julgamento realizado no Brasil.
Todos os julgamentos mencionados no livro passam a sensação de injustiça, de que alguém que saiu impune ou foi punido por algo pelo qual não merecia a punição. Mas para que se julgue algo como injusto é preciso fixar um conceito do justo.
Trata-se de um conceito abstrato e sobre o qual não há consenso. Filósofos tentam definir justiça a séculos mas sem sucesso. Isso ocorre porque justiça não é algo que possa ser mesurado ou definido pois se trata de um sentimento. Por mais que se tente definir amor, só se sabe realmente o que amor quem o sente. O mesmo para ódio, tristeza, alegria, paz, ansiedade e, como não podia deixar de ser, Justiça. E como todo sentimento, depende de circunstâncias que envolvem o agente: aquele que sente. Circunstâncias que são internas, tais como criação, tendências inatas, valores, traumas ou externas, como a criação, valores impostos pela família e pela religião, além do momento histórico em que cada pessoa vive. Há, ainda, circunstâncias externas que, não obstante não influírem na percepção do indivíduo e por esta razão, não criarem um sentimento de injustiça ou justiça, podem proporcionar a faísca para o sentimento aflorar.
Tratando-se de um sentimento, justiça pode ser compreendida como aquilo que nos garante que o equilíbrio perdido em razão de um ato ou fato foi restaurado - sensação de que “justiça foi feita” - ou de desequilíbrio – sensação de não foi “feita a justiça”, de que o injusto prevaleceu. Sensação de que se o ato a ser punido e a punição aplicada fossem colocados em uma balança, os pratos estariam equilibrados, no mesmo alinhamento horizontal. O que vai proporcional esse sentimento de restauração do equilíbrio é peculiar a cada um e vai variar para cada pessoa e, inclusive, para a mesma pessoa ao longo do tempo. O que para mim é ser considerado justo hoje, pode passar a ser considerado injusto daqui a alguns anos e vice versa, desde que circunstâncias internas ou externas alterem minha percepção.
Em regra, o ato de matar alguém é punido criminalmente (artigo 121 do Código Penal). Tomemos como exemplo um homicídio simples. Seu agente é condenado a 15 anos de reclusão[3]. Para uma pessoa estranha à vítima, sua família e ao assassino, a pena poderá ser considerada justa: quinze anos na prisão não é pouco. Para a família da vítima, poderá ser considerada insuficiente e, portanto, injusta. E para a família do assassino, poderá ser considerada excessiva e, portanto, injusta. A sensação de justiça, nesse caso, só será sentida pela pessoa estranha aos fatos e às pessoas envolvidas. Para essas últimas o que ocorrerá será um sentimento de injustiça, tanto para um lado (favorecimento ao assassino) tanto para o outro (punição excessiva).
Um sentimento de injustiça permeou muitos brasileiros quando do julgamento dos réus acusados em razão do que ficou conhecido como “mensalão”. O condenado José Genoíno, mesmo na iminência de ser efetivamente preso para cumprir a pena que lhe foi imposta, tomou posse como deputado na condição de suplente de um colega de partido, eleito para assumir a vaga de prefeito na sua cidade. Difícil aceitar a situação de um réu que toma posse como deputado no lugar de ir para a cadeia. Mas o fato não é ilegal, no sentido de estar contra a lei. Não há nenhuma lei que vede o procedimento. Mas, como disse Dan Stulbach no programa “Saia Justa”, episódio levado ao ar no dia 09/01/2013, no canal GNT da TV por assinatura: muitas vezes o que é justo e o que é legal não se encontram.
Voltando ao livro de Sadakat Kadri.
Na Idade Média, antes da instituição da tortura como forma oficial de se obter a confissão, necessária para se condenar alguém, utilizavam-se as ordálias. Impunha-se ao suspeito de cometer um crime ou heresia ou ambos uma prova, que na maioria das vezes consistia em ser afundado em um lago ou rio, e, se não morresse, era prova de que era inocente, pois Deus não permitiria que um inocente morresse. Se se afogasse, era culpado. Por mais irracional e absurdo que isso possa parecer aos olhos de uma pessoa do Século XXI, beneficiada pelo Iluminismo, Revolução Francesa, Constituição Americana, Declaração dos Direitos do Homem, dentre outros, provavelmente os juízes a quem competia julgar a pessoa em questão, tal procedimento era legal e, em regra, considerado justo.
Arrisco a dizer o mesmo da confissão: se alguém, após passar pela dor, confessava um crime ou uma heresia, assumindo a culpa, e esse método era considerado divino pois fora instituído pela Igreja Católica, única até então, autorizada a falar em nome de Jesus Cristo, não haveria motivo para se acreditar que se estava cometendo uma injustiça. Imagino que o julgador, na época, religioso como as pessoas de então, ficaria receoso de sua própria alma ser enfiada aos fogos eternos do inferno caso permitisse que a alma de outra pessoa fosse para lá, por falta da purificação pelo fogo, que, no entender da época, era a única forma de se limpar quem praticava o que era considerado heresia.
Ignorância? Difícil dizer.
Hoje afirmamos com certeza que era ignorância sim. Só que essa afirmação é feita com os olhos do século XXI, milênios de filosofia e décadas de psicologia nos dando respaldo e subsídios para julgarmos assim. Esquecemos que quem viveu na época das fogueiras só tinha a Bíblia e os seus comentários para se apoiar. A própria filosofia era atrelada à Bíblia, mesmo por pensadores como Agostinho e Tomás de Aquino que, não obstante a bagagem de filosofia grega que tinham, tentaram adaptá-la ao cristianismo.
Daí a necessidade de se contextualizar o conceito de justo no tempo, espaço e circunstâncias histórico, econômico e sociais, antes de efetuar qualquer valoração sobre a correção do julgamento efetuado por um juiz que viveu em outra época e outro tempo, com outros valores.
E para fixar parâmetros hoje, para se tentar praticar a justiça, no sentido de restauração do equilíbrio violado por um ato praticado por um ser humano contra outro? É racionalmente impossível fixar um parâmetro que vá permitir que todas as pessoas sintam que, em um determinado caso específico, “foi feita justiça”, ou seja, que o equilíbrio foi restaurado.
Se não é possível fazer com que todas as pessoas sintam que o equilíbrio voltou, é possível, porém, ficar regras que permitam, com base no bom senso e na análise de um determinado contexto histórico, social e econômico, localizado no tempo e geograficamente, gerar uma sensação de justiça para a maioria das pessoas, ainda que não para todas.
Tomando por exemplo uma pessoa desempregada, faminta, que furta um pão. Esse exemplo consta do livro Lês Misérables, de Victor Hugo(Ed. Le Livre de Poche, 1998). Nele, o personagem principal, Jean Valjean, é condenado a 19 anos de prisão, cinco deles por ter furtado um pão e o restante pelas tentativas de fuga.
Se o legislador for uma pessoa de posicionamento liberal com relação à penalização, priorizando o direito à propriedade, devendo ser preservado o direito do proprietário do pão, a pessoa que o furtou deve ser penalizada pelo furto, independentemente das razões que o levaram a praticar o ato. Nessa hipótese, o autor do furto deve ser efetivamente condenado à prisão.
Para uma pessoa de posicionamento enfocando o bem estar social, o estado de miséria do autor do furto deve ser levado em consideração para afastar a punibilidade ou, até mesmo, a própria condição ilícita do fato. O autor do fato, portanto, deveria ser absolvido ou ter, ao menos, a punibilidade extinta.
Nenhuma das duas hipóteses, a meu ver, atende o objetivo de que as regras aplicáveis permitam que a maioria das pessoas se sintam satisfeitas com a solução dada ao caso, no sentido de que o equilíbrio perturbado pelo furto do pão foi estabelecido pela punição ao seu autor. Manter alguém preso simplesmente por furtar um pão soa excessivo. Por outro lado, manter impune alguém que furta algo que não lhe pertence, é injusto com o proprietário do bem.
O equilíbrio está no meio termo. Não há necessidade de se mandar o autor do furto para a prisão mas é possível que lhe seja aplicada uma pena alternativa de conteúdo mais educativo do que repressor, para lhe mostrar que o que fez está errado.
Voltando ao episódio ocorrido no Rio de Janeiro.
O rapaz acorrentado ao poste é acusado (em sentido informal do termo, não se tratando de uma acusação formalizada pelo Ministério Público) e pessoas que não fazem parte do aparato punitivo do Estado (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) tomam para si a tarefa de puni-lo. Considerando que há uma notória deficiência do Estado em investigar crimes e punir seus agentes, acarretando uma impunidade generalizada, o sentimento de injustiça ao qual me referi no início desse texto – um ato e/ou fato provocou um desequilíbrio em uma situação em que existe uma determinada ordem – o ato de punir uma pessoa acusada de um crime permite que essa sensação de equilíbrio restaurado – de justiça – seja sentida. Daí a aprovação imensa que o ato em si teve e o apoio que a jornalista do SBT obteve após suas declarações.
Só que o que os “justiceiros” fizeram não foi apenas punir aquela pessoa por aqueles delitos (furtos de celulares). Eles conseguiram restaurar, como já mencionei, o sentimento de que o equilíbrio perdido por causa da atuação de uma criminalidade disseminada, aliada à sensação de impunidade foi restaurado. Nesse raciocínio, ato do acorrentamento é uma espécie de catarse e o rapaz é apenas um “bode expiatório” de uma sede de justiça ou, melhor ainda, de que o equilíbrio foi restaurado.
Há séculos o Estado pegou para si o direito de punir criminosos. E esse direito ainda lhe pertence sem qualquer tipo de exceção. Se não o exerce por ineficiência, falta de recursos e/ou de vontade de política, tal omissão, por si só, não autoriza ninguém a tomar para si essa tarefa punitiva. Essa prática ainda é ilegal. Contudo, a sensação de que há “justiça a ser feita” ou equilíbrio a ser restaurado, acumulada ao longo de anos de criminalidade endêmica e impunidade generalizada, deu respaldo e validação à conduta como se fosse um ato de justiça.
Isso ocorre com sentimentos em geral: sentimentos reprimidos e armazenados aos poucos raiva armazenada aos poucos vão se acumulando e um dia explodem em toda a sua fúria contra uma vítima desavisada. E normalmente a faísca que detona a explosão é alguma coisa bem pequena. A reação parece desproporcional para quem a vê mas não é para quem sabe o histórico de raiva reprimida do irado.
O sentimento reprimido e depois extravasado por meio da explosão pode ocorrer de forma geral, em um grupo de pessoas. E acho que é isso que ocorre no caso desse rapaz que foi acorrentado. A aprovação popular, ainda que sem perspectiva (os atos dos quais o rapaz foi acusado não justificam a punição horrorosa que lhe foi imposta pelos “justiceiros”), as pessoas aprovam a punição em si porque se sentem aliviadas no sentido de que “justiça foi feita”.
Mas a barbárie do ato em si permanece subjacente a tudo isso, mostrando que esses atos podem ir se tornando cada vez mais frequentes e violentos e que, na realidade, a sensação de equilíbrio que provocam é momentânea porque um ato de barbárie não pode servir de contrapeso para um ato criminoso, principalmente quando aquele é desproporcional a esse.
Quem aprovou o ato e as declarações da jornalista do SBT se esquece disso: a sensação de que justiça foi feita se alicerça sobre bases falsas. Nenhuma justiça foi feita na realidade. E assim como ocorre com qualquer tipo de vício, a sensação de injustiça ou desequilíbrio volta logo e mais cada vez mais e mais frequentes atos de barbárie serão necessários para restaurar um equilíbrio que se perdeu há muito tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário