O Papa Francisco tem dito que hoje adora-se ao "Deus Dinheiro", como na frase "Criamos novos ídolos. A antiga veneração do bezerro de ouro assumiu uma forma nova e sem alma no culto ao dinheiro e a ditadura da economia, que não tem rosto e carece de um verdadeiro objetivo humano".
Acho uma grande bobagem. Em primeiro lugar porque dinheiro, como todas as coisas que existem, não tem valor em si. O valor que possui é o valor que lhe é atribuído pelos seus usuários: nós, os humanos. Em segundo lugar, porque dinheiro não tem livre arbítrio e não pode ser responsabilizado pelo uso que se faz dele.
Dinheiro é uma coisa maravilhosa. Foi o dinheiro quem permitiu a troca irrestrita de bens sem o limite imposto pela disponibilidade e interesse em trocar coisas, permitindo, como consequência, o acesso de qualquer um a qualquer bem, desde que houvesse alguém disposto a vender e alguém, detendor de dinheiro, disposto a comprar.
Antes da invenção do dinheiro, se eu tivesse apenas ovos e precisasse de lã, teria que encontrar alguém disposto a trocar lã por ovos. De nada iria me adiantar alguém que tivesse lá mas precisasse de leite, pois iria trocar a lã com quem tivesse leite e não ovos. Eu continuaria com os ovos mas ficaria sem a lã. O dinheiro nos libertou dessa limitação da troca, permitindo que eu trocasse os ovos por dinheiro e o dinheiro por lã. Quem recebeu o dinheiro em troca da lã poderia trocá-lo por leite.
Não tendo livre arbítrio e não tendo valor em si, o dinheiro não é responsável pelo uso que fazemos dele. Dinheiro em si não é bom nem ruim. É um meio de troca. Poderíamos ter outro como sal, areia, ouro, lã, sei lá o que. Mas inventamos o dinheiro. O uso que se faz dele pode ser nobre, vil ou mesmo inócuo. Mas a responsabilidade pelo uso é sempre de quem o usou. A faca usada para matar e depois usada por um médico para uma cirrugiapara salvar uma vida não é a responsável pela morte nem pela saúde. Os reponsáveis são o assassino que segurou a faca que matou e o médico que efetuou a cirurgia. É assim com o dinheiro. E também de quem produz os bens de troca. Se o dinheiro é usado para ser trocado por drogas para alimentar o vício de alguém, a culpa do vício e da produção da droga é da pessoa que usa a droga ou de quem a produz, nunca do dinheiro.
O que o Papa Francisco chama de idolatria ao dinheiro é outra coisa. É algo bem mais ao fundo. Dinheiro, como já falei, é um meio de troca e por dinheiro se troca quse tudo. Como disse Rhett Buttler no livro "... e o Vento Levou", de Margaret Mitchell, se o dinheiro não compra a coisa em si, compra umas ótimas imitações. Quanto mais dinheiro se tem, mais coisas se pode ter. A propriedade de coisas tornada possível através do dinheiro permite que seu proprietário se sinta seguro. E segurança material é corolário do institinto de sobrevivência: se meus ancestrais se sentiam seguros se morassem em uma boa caverna, vivessem em lugar com caça disponível e fossem fortes, hoje as pessoas se sentem seguras se possuem muito dinheiro, ainda que essa sensação de segurança seja falsa porque nada é seguro. A impermanência é inerente à vida. Mas é claro que possuir dinheiro não está relacionado apenas com a necessidade segurança, decorrente do instinto de sobrevivência. Na sua obra magistral "Escape From Freedom" (Holt Paperbacks; Owl Book, kindle edition), o psicanalista Erich Fromm relata muito bem porque as pessoas querem dinheiro e poder: para retornar à sensação de pertencerem a algo, sensação essa rompida tanto do ponto de vista pessoal quando do nascimento e gradual desvinculação da mãe quanto na sociedade, após a Idade Média, quando o ser humano passou a ser livre mas, ao mesmo tempo, sentindo uma solidão e um desamparo enormes.
O problema não está na "idolatria do dinheiro" como diz o Papa Francisco. Abandonar a busca por dinheiro ou os meios para obtê-lo não vai alterar em nada. Há algo motivando essa busca, algo bem no fundo da alma humana. Algo que faz as pessoas quererem cada vez mais dinheiro e mais poder, mais poder e mais dinheiro, sempre e nunca essas duas coisas são suficientes.
E para saber o que move essa busca por dinheiro, acho que Papa Francisco deveria fazer como seu amigo, o Rabino Abraham Skorka, e ler Freud. No livro que escreveram juntos (Sobre o Céu e a Terra, kindle edition), O Rabino cita Freud e confessa concordar com ele, ainda que em parte, quando o grande mestre afirma que "necessitamos da idéia de Deus por conta de nossa angústia existencial" (posição 268). E é essa angústia existencial que faz com as que pessoas busquem algo que as preencha, que as faça felizes, que as integre ao todo. E como o dinheiro permite o acesso a quase tudo que existe no mundo, pelo menos do ponto de vista material, a tentativa de transformar essa angústia existencial em alegria passa necessariamente pela posse do dinheiro, ainda que depois a pessoa descubra que vai continuar sempre angustiada. Tanto que retirado o dinheiro, mas mantida a angústia, a "idolatria" passaria para uma outra coisa, como droga, religião (aí surge o fanatismo), porque o elemento de fundo, aquilo que move a pessoa, aquela angústia e sensação de vazio, vão continuar ali.
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