sábado, 7 de março de 2015

O CONCERTO E O MASCATE DOS TEMPOS

Mando um texto, que segue abaixo, pegando carona no que disse a Fabíola sobre música e literatura no seu último texto. Também acho que devemos ler (e ouvir) ao menos tentando ignorar as etiquetas pré-estabelecidas sobre as obras. Assim, não devemos nos assustar quando lemos um “clássico” e dele não gostamos. Ora, se isto é heresia, deixemos para a critica literária profissional a tarefa de nos catalogar como heréticos. Nem por isto (caso ocorra) a literatura e a música deixarão de ser feitas para o mundo e para as pessoas apreenderem algo de novo, alguma “fatia do eterno” captada pelas antenas da humanidade, que são os artistas, os músicos, os literatos, etc (acho que a expressão é do Ezra Pound).


Por isto, e como eu disse, aproveitando a carona, apresento a seguir texto que escrevi sobre o Concerto nº 2 de Rachmaninoff e que, longe de ser um texto crítico, é calcado exclusivamente nas minhas sensações subjetivas; é mais uma ode, mistura pretensa de prosa, poesia e música; uma declaração de amor à melhor música feita pelo ser humano.


José Eduardo de Almeida Leonel Ferreira


(PS: também não gosto muito de “Coração das Trevas”)


O CONCERTO  E O MASCATE  DOS TEMPOS


Talvez poucos admitam, mas toda pessoa educada sabe que, ao final das contas, o concerto n. 2 de Rachmaninoff é a maior obra musical jamais feita. Que um russo seja seu autor, menos de quarenta anos depois de Tolstoi e Dostoievski terem criado mundos e esquadrinhado a alma humana, representa apenas uma curiosidade e mais uma humilhação que estes cossacos infringiram ao restante da humanidade. Pouca importância tem, também, o fato de Beethoven e Mozart serem, respectivamente, o maior compositor e a própria música personificada, na frase de efeito (ele era" a própria música") - não obstante cheia de verdade - de Anthony Burgess.


 O efeito desta música sobre os sentidos torna pálida quase toda obra erudita e, por que não dizer, até o mais contundente e belo riff do  rock and Roll. Compare com " Smoke on the Water" ou " Smell like teen spirit" e sinta a vivida  experiência de  sentir vergonha de fazer parte do caldo cultural contemporâneo (e olhe que gosto muito destas duas músicas).

  

Há inebrio e a sensação de que nos deparamos, finalmente, com algo que excede a capacidade de realização humana. Com seu mote musical,  Rachmaninoff pinçou algo das vísceras, dobrou as esquinas da realidade e nos mergulhou no domínio dos sonhos. Mas é ainda mais que isto. È a experiência de sair de si sem fonte química externa. Ao mesmo tempo que os sentidos a capturam, uma contradição insolúvel parece surgir quando a música nos leva para longe de nós mesmos, para além do território no qual estes mesmos sentidos operam. 


 É impossível não morrer, mas se alguém já chegou o mais perto possível disto, este alguém foi Rachmaninoff. Ele tinha inacreditáveis 18 anos quando a compôs e, como um mascate dos tempos, parece ter trocado com entidades etéreas sua alma adolescente por uma fatia do eterno, servida para nós em uma bandeja de prata, na qual se mesclam os sabores do delírio da transposição do ego e do flerte com o sagrado.


 O que este russo fez merece uma descrição que se aproxime da forma mais correta de sua apreciação. Não é uma música. Musicas se ouvem. O concerto n. 2 de Rachmaninoff se delira.

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