De vez em quando leio na internet matérias contando de polêmicas entre defensores do parto natural e defensores da cesariana. Os primeiros, tentando impor aos segundos sua visão de que o parto natural, por ser natural, assim entendido um procedimento instituído pela própria natureza, é melhor para todo mundo: mães e bebês. Opinião é igual derièrre: cada um tem a sua. Mas é preciso sair um pouco da superficialidade e analisar se o que é reputado natural por ter sido decretado pelo nosso lado biológico é melhor mesmo.
Falando de parto. Do que li a respeito das discussões a respeito do parto natural e do parto via cesariana, o primeiro é natural se feito sem auxílio médico, no máximo com o auxílio de doulas ou parteiras, e em casa. Ora, acredito que os defensores da prática se esqueceram que parto era a principal causa de morte das mulheres, até a descoberta da anestesia e o início de seu uso em cirurgias em meados do século XIX e também o aperfeiçoamento das cesarianas, permitindo a extração de bebês quando o parto “natural” se tornava inviável. E antes que se defenda que o parto natural só é recomendável se as condições físicas da mãe e do bebê assim o permitirem, deve sempre ser lembrado que muitas das complicações do parto ocorrem na hora, sem qualquer possibilidade de terem sido previstas antes e exigem solução imediata. Para quem está em casa, chegar ao hospital e estar em uma mesa de cirurgia para a famigerada cesariana pode se dar tarde demais, principalmente se mora em uma cidade grande com trânsito complicado.
No caso específico das cesarianas, uma técnica que modifica uma situação muito difícil para as mulheres, permitindo que pudessem ter mais filhos sem que isso fosse o principal risco de óbito para elas, passa a ser demonizada exatamente por não ser reputada “natural”. E isso não acontece somente com as cesarianas.
No filme Meia Noite em Paris, o personagem de Owen Wilson, Gil, sente-se frustrado nos anos 2000 e anseia por viver nos anos 20, entre aqueles que considerava os grandes gênios – Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Salvador Dali, Man Ray -. Ele consegue realizar o desejo entrando em um carro que o transporta para essa década. Já nos anos 20, apaixona-se por uma moça, Adriana, que anseia em viver na Belle Époque (período de alta expansão cultural na Europa, que vai de 1871 até o início da 1ª Guerra Mundial, em 1914). Pegando carona em uma carruagem, os dois vão parar exatamente na Belle Époque, onde os escritores que encontram anseiam por viver na época de Michelangelo. Gil tem uma revelação: o presente é um pouquinho insatisfatório porque a vida é um pouquinho insatisfatória. E o argumento que ele dá a Adriana para retornar ao século XX é que aquelas pessoas, entre o final do século XIX e o início do século XX, sequer conheciam antibióticos.
Antibióticos permitiram que hoje as pessoas não morressem mais de doenças infecto contagiosas, como era a regra até a descoberta da penicilina em 1928. Toda uma literatura foi feita no século XIX a respeito de pessoas que morriam de tuberculose. É raro alguém morrer de tuberculose agora. É mais comum morrerem de câncer, problemas cardíacos, complicações decorrentes de diabetes ou de vício em entorpecentes. Mesmo assim, antibióticos, assim como as cesarianas, são consideradas coisas ruins por um número assustadoramente alto de pessoas.
Lembro também de uma polêmica recente nos Estados Unidos. Um casal requereu que um juiz determinasse que todos os colegas de seu filho se vacinassem. O garoto possui uma doença rara que lhe retira a imunidade e a única forma de poder conviver com as pessoas é na certeza de que elas não contrairão doenças que, não obstante não mata-las, para ele será fatal. Não foram bem sucedidos. O juiz decidiu que de acordo com as regras da Califórnia, estado onde se deram os fatos, vacinar os filhos é opção dos pais e não uma obrigação. Por isso não poderia dar uma decisão compelindo-os a vacinar os filhos.
Vacinas são um produto da tecnologia, a possibilidade de nos inocularmos com germes que provocam doenças de uma forma branda o suficiente para que não contraiamos a doença mas forte o suficiente para provocar nosso sistema imunológico de forma que, no futuro, caso sejamos colocado em contato com esses mesmos gérmens, a doença não se desenvolva. Foi assim que muita gente deixou de morrer por causa de varíola e não ficou com deficiente motora por causa da paralisia infantil.
Mas há pais que entendem que vacinar é anti natural e que as crianças devem ser deixadas a lidar com as doenças naturalmente.
Mas agora, se realmente queremos uma vida “natural”, sem qualquer coisa criada ou descoberta pela ciência, lidando diretamente com a vida da forma como viviam nossos ancestrais pré tecnologia, acho que devemos ir até as últimas consequências.
Comida orgânica sempre, mesmo lembrando que a humanidade deixou de passar fome somente após a invenção dos agrotóxicos. Até então era comum que alguns surtos de determinados insetos ou plantas devastassem lavouras inteiras.
O corpo deve estar apto a lugar contra os invasores. Nada de antibióticos, anti-inflamatórios.
Dor é um processo natural. Quaisquer problemas que a provoquem devem ser visto como algo pelo qual nosso corpo tem que passar. Ficam riscados os analgésicos da nossa vida.
Alguma intervenção cirúrgica é necessária? Bem, apensar do seu caráter anti-natural talvez tenhamos que nos submeter a ela, afinal o instinto de sobrevivência fala mais alto, não é mesmo? Mas aí, nada de analgésicos também. Tudo por uma vida natural.
Andar de carro? Nem pensar. Nem de bicicleta. Temos duas pernas, não temos? Então, precisamos apenas delas para irmos de um lugar a outro. Ahhh, não é possível atravessar o oceano nadando? Se não é natural, não podemos fazer, ora bolas.
Sapatos? Nem pensar. Impedem um contato mais direto dos nossos pés com o solo. Roupas? Mesma coisa. Nossa pele deve ser nosso meio de contato com o mundo e as roupas vão ficar no meio.
Claro que tudo isso é brincadeira. Nem pensaria em defender cirurgias sem analgésico, infecções sem antibióticos ou qualquer outra coisa que torne nossa vida melhor, mais fácil e mais confortável, ainda que não seja “natural”.
Mas acho bom pensar bastante antes de achincalhar a tecnologia e tudo de bom que ela nos proporciona. Para quem rejeita de plano a tecnologia em alguns aspectos apenas, sem considerar como e porque ela veio, nem quais os benefícios que trouxe, apesar do seu caráter “anti natural”, é bom ter uma visão geral dos benefícios que temos hoje. Aliás, uma reportagem do site The Atlantic (http://www.theatlantic.com/international/archive/2015/12/good-news-in-2015/421200/) afirma que 2015 foi o melhor ano para o ser humano médio em todos os tempos em que estamos por aqui e 2016 será ainda melhor. A humanidade está mais bem alimentada, mais bem educada, mais saudável, livre, tolerante e mais rica. E devemos boa parte desse sucesso à tecnologia e a todas as coisas anti naturais que ela nos proporcionou, como cesarianas, antibióticos, analgésicos, carros e agrotóxicos.
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