Uma das tarefas mais difíceis de quem lida com o direito é interpretar as leis. Não se trata apenas de dizer qual lei vale para uma determinada situação. A questão vai muito além. Trata-se de avaliar o que efetivamente aquela lei quer dizer. Usa-se, inclusive, a expressão “vontade do legislador”: o que os membros do parlamento, quando editaram aquela lei, tinham em mente?
As leis se compõe, como todo símbolo, de um significado e de um significante. O significante é o conjunto de palavras utilizadas para a edição da lei. Significado é o que a lei quer dizer. Considerando que cada palavra é, por sim, um símbolo, a interpretação da lei como um todo leva em conta não só o significado da lei propriamente dito mas o de cada palavra da qual ela se utiliza.
Como a maioria das leis é mais duradoura do que as situações que elas se propõe a regulamentar, muitas vezes a tarefa de tentar entender o que, de fato, pretendem dizer, assume caráter quase profético.
Mas nem sempre é assim. Muitas vezes, basta verificar o que o legislador queria dizer quando a lei foi editada considerando a realidade vivida por ele na época e o que teria dito hoje, com a realidade de hoje. E também o que cada palavra significava na época em que a lei foi editada e confrontar com o que essa palavra significa hoje. Na maioria das vezes, esse processo é suficiente para se entender o significado da lei sem necessidade de se alterar os significantes propriamente dito. Fica mais difícil se um determinando significante continua com o mesmo significado que tinha quando do início da validade da lei mas a situação que pretende regular se alterou. Nessa hipótese, nada nos resta senão esperar que o legislador se incumba de seu papel e altere a lei.
Há algumas semanas, conversando com um colega, comentávamos a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos da ADI 4277, que, interpretando o artigo 226, § 3º da Constituição Federal, decidiu que esse dispositivo se aplicava, também, à união entre pessoas do mesmo sexo. Diz o texto do § 3º:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
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§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
O artigo 226 trata da família e da proteção que ela deve ter do Estado bem como da igualdade entre o homem e a mulher, inexistente na ordem jurídica que antecedeu a Constituição. E para conceituar família, seja ela constituída formalmente mediante o casamento civil ou apenas de fato, com a união de duas pessoas sem maiores formalidades, morando na mesma casa, referiu-se a “união entre homem e mulher”.
Meu colega sustentava que o Supremo Tribunal Federal não poderia ter alterado a vontade do legislador no sentido de que, para ele, família seria a união entre um homem e uma mulher para estender o conceito a pessoas do mesmo sexo. Para permitir a união entre pessoas do mesmo sexo, deveria-se ter aguardado que o próprio legislador, via Emenda Constitucional, substituísse “homem e mulher” por “duas pessoas”.
Discordei dele pelos motivos que expliquei acima: é possível, nesse caso específico, adequar o significado dos significantes utilizados pelo legislador constitucional à realidade atual, considerando o significado que tinham na realidade vivenciada por ele.
Em 1987/1988, época em que se discutia a Constituição, família era considerada apenas como sendo a união de um homem e uma mulher. Não obstante haver pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, era uma situação excepcional, muitas vezes não explícita, principalmente pela marginalização que essas pessoas sofriam, e dessa união não surgia nenhum direito, tais como benefícios previdenciários, herança, possibilidade de adotar filhos ou de registrar filho biológico de um dos parceiros como filhos de ambos.
Ao longo desses 28 anos, a união entre pessoas do mesmo sexo começou a fazer parte da realidade cotidiana e lhes foi sendo estendido, aos poucos, o mesmo rol de direitos das outras pessoas, inclusive o de adotarem e registrarem filhos no nome de ambos os parceiros. Esse reconhecimento foi se solidificando no sentido de que o próprio significado da palavra família mudou. Passou a significar a união de duas pessoas, independentemente do sexo. Foi exatamente esse o fundamento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal quando decidiu que é possível a união entre pessoas do mesmo sexo, inclusive para efeitos de registro civil: (...)Tratamento constitucional da instituição da família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. A família como categoria sócio cultural e princípio espiritual Direito subjetivo de constituir família. Interpretação não reducionista. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos(...).
Essa interpretação não foi difícil. Família é um símbolo cujo significado vai mudando e não há necessidade de se alterar o significante, como queria meu colega com o § 3º do artigo 226 da Constituição. Mas há muitas situações em que isso não é possível. Mas há situações em que ou o significado de determinado significante permanece o mesmo ou, mesmo tendo se alterado ao longo do tempo, não é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse. E aí, a pretexto de “interpretar” a lei e fazer valer a vontade do legislador, o intérprete, na realidade, faz valer a sua vontade e atribui a determinado significante um significado que ele nunca teve. Ou substitui um significante por outro, cujo significado é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse o do significante substituído. Essa prática foi chamada de Justiça Cósmica por Thomas Sowell sem seu texto The Quest For Cosmic Justice (http://www.tsowell.com/spquestc.html): culpa-se a Sociedade pelas desigualdades entre as pessoas, ainda que essas desigualdades sejam congênitas, culturais, genéticas, sociais, econômicas e afastando-se o que as regras estabelecidas em um Estado de Direito impõe, aplicam-se regras criadas para aquele caso específico, a fim de se “fazer justiça”, na acepção do aplicador do direito naquele momento, em detrimento de todo o restante das pessoas.
Essa forma de se corromper a intenção do legislador e dar a um determinado significante um significado que ele nunca teve, insere-se na acepção de Justiça Cósmica e produz, a médio e longo prazo, uma injustiça ainda maior na medida em que um número grande de pessoas é prejudicada em detrimento daquele único beneficiário.
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