sábado, 12 de março de 2016

Cansada de Mimimi

Estou cansada dessa coisa mimimi que anda por aí. Gente que se ofende porque se dá os nomes corretos às coisas. Ou porque a realidade é o que é e não a sala de estar da casa da mamãe com bolinho e chazinho. Vejam bem: o mundo não é e nunca foi nossa zona de conforto. Aliás, se pensarmos bem, zona de conforto é algo bem restrito e que só existe dentro da nossa cabeça. 

Mas a existência desse povo mimimi está deixando a coisa tão bizarra que estudantes na Universidade de Harvard, eleita várias vezes a melhor do mundo, estão se sentindo ofendidos com expressões usadas pelos professores. A história foi contada por João Pereira Coutinho na coluna "Como Destruir Um Filho", publicada na Folha de São Paulo em 22/09/2015. E não se trata de palavrões ou palavras de baixo calão. Trata-se de poupá-los de algo que possa perturbar seu bem estar emocional, como utilizar a expressão "violar a lei", porque "violar" é algo ofensivo. 

Bem estar emocional é algo ao qual os alunos acreditam piamente que tem direito. E como todos que se arvoram algum direito, também acreditam que alguém (normalmente a família, sociedade, governo, professores) tem a obrigação (não param para pensar de onde esse algo seria retirado nem se realmente tem esse direito) de lhes proporcionar. No caso, bem estar emocional. Algo assim: o professor de literatura deve avisar que na obra O Grande Gatzby de Scott Fitzgerald há misoginia e abusos físicos. Fico imaginando que tipo de preparação se deveria dar aos alunos antes de lerem Uma Canção de Gelo e Fogo de George Martin.
A coluna me veio à memória lendo Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916-1917) do grande Freud, publicada pela Companhia das Letras, 2014. Ao falar para uma plateia composta de pessoas de ambos os sexos na segunda década do século XX, ele adverte que vai falar sobre sexo mas que todos ali são adultos, portanto nada de pudores nem de pitis. Transcrevo o trecho: "Como esta é a primeira vez, nestas conferências, que falamos de conteúdos da vida sexual, devo prestar contas aos senhores sobre que tratamento pretendo dar a esse tema. A psicanálise não vê motivo para dissimulações e alusões, julga não ser necessário que nos envergonhemos de abordar assunto tão importante; crê, portanto, que correto e decente é chamar as coisas pelo nome e espera, assim, manter distantes quaisquer pensamentos paralelos perturbadores. O fato de estarmos falando a uma plateia composta de membros de ambos os sexos nada modificará nessa nossa postura. Assim como não existe ciência in usum delphini, tampouco existe ciência para mocinhas, e as damas que aqui se encontram já indicaram mediante sua presença nesta sala de aula que desejam ser equiparadas aos homens".

Falando para uma plateia mista em uma época na qual as mulheres ainda usavam espartilho e saias longas, não costumavam trabalhar e imperava o machismo, as palavras dele adquirem um peso muito diferente do que se tivessem sido ditas hoje. E a referência a mocinhas se deu porque as mulheres na época em que ele viveu eram tão reprimidas sexualmente que desenvolviam uma doença - a histeria - que se confunde, inclusive, com o próprio início da psicanálise. Tratava-se de uma doença com sintomas físicos e psicológicos provocada pela repressão sexual.

Mas com esse mimimi com relação à vida em geral, a capacidade de sair da zona de conforto, de lidar com a realidade tal como ela se apresenta, sem almofadas ou parachoques é algo que temo que acabemos perdendo. Adam Smith disse que a riqueza produzida pela economia de mercado nos transformaria todos em uns mimados. Mas ainda assim, todo esse bem estar proporcionado pela tecnologia (2015 foi o melhor ano da história para o homem médio, conforme a Revista Atlantic) está deixando todo mundo meio bobo. E se ofendendo por nada. E dando pitis.
Imagino o que Freud diria hoje da atitude mimimi de pessoas pós espartilho, pós revolução sexual (anos 60), pós revolução tecnológica, pós internet, pós redes sociais. Talvez falasse que estamos precisando de uma guerra ou duas. De um pouco de realidade. De um pouco de vergonha na cara.

Por Uma Vida Natural

De vez em quando leio na internet matérias contando de polêmicas entre defensores do parto natural e defensores da cesariana. Os primeiros, tentando impor aos segundos sua visão de que o parto natural, por ser natural, assim entendido um procedimento instituído pela própria natureza, é melhor para todo mundo: mães e bebês. Opinião é igual derièrre: cada um tem a sua. Mas é preciso sair um pouco da superficialidade e analisar se o que é reputado natural por ter sido decretado pelo nosso lado biológico é melhor mesmo.
Falando de parto. Do que li a respeito das discussões a respeito do parto natural e do parto via cesariana, o primeiro é natural se feito sem auxílio médico, no máximo com o auxílio de doulas ou parteiras, e em casa. Ora, acredito que os defensores da prática se esqueceram que parto era a principal causa de morte das mulheres, até a descoberta da anestesia e o início de seu uso em cirurgias em meados do século XIX e também o aperfeiçoamento das cesarianas, permitindo a extração de bebês quando o parto “natural” se tornava inviável. E antes que se defenda que o parto natural só é recomendável se as condições físicas da mãe e do bebê assim o permitirem, deve sempre ser lembrado que muitas das complicações do parto ocorrem na hora, sem qualquer possibilidade de terem sido previstas antes e exigem solução imediata. Para quem está em casa, chegar ao hospital e estar em uma mesa de cirurgia para a famigerada cesariana pode se dar tarde demais, principalmente se mora em uma cidade grande com trânsito complicado.
No caso específico das cesarianas, uma técnica que modifica uma situação muito difícil para as mulheres, permitindo que pudessem ter mais filhos sem que isso fosse o principal risco de óbito para elas, passa a ser demonizada exatamente por não ser reputada “natural”. E isso não acontece somente com as cesarianas.
No filme Meia Noite em Paris, o personagem de Owen Wilson, Gil, sente-se frustrado nos anos 2000 e anseia por viver nos anos 20, entre aqueles que considerava os grandes gênios – Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Salvador Dali, Man Ray -. Ele consegue realizar o desejo entrando em um carro que o transporta para essa década. Já nos anos 20, apaixona-se por uma moça, Adriana, que anseia em viver na Belle Époque (período de alta expansão cultural na Europa, que vai de 1871 até o início da 1ª Guerra Mundial, em 1914). Pegando carona em uma carruagem, os dois vão parar exatamente na Belle Époque, onde os escritores que encontram anseiam por viver na época de Michelangelo. Gil tem uma revelação: o presente é um pouquinho insatisfatório porque a vida é um pouquinho insatisfatória. E o argumento que ele dá a Adriana para retornar ao século XX é que aquelas pessoas, entre o final do século XIX e o início do século XX, sequer conheciam antibióticos.
Antibióticos permitiram que hoje as pessoas não morressem mais de doenças infecto contagiosas, como era a regra até a descoberta da penicilina em 1928. Toda uma literatura foi feita no século XIX a respeito de pessoas que morriam de tuberculose. É raro alguém morrer de tuberculose agora. É mais comum morrerem de câncer, problemas cardíacos, complicações decorrentes de diabetes ou de vício em entorpecentes. Mesmo assim, antibióticos, assim como as cesarianas, são consideradas coisas ruins por um número assustadoramente alto de pessoas.
Lembro também de uma polêmica recente nos Estados Unidos. Um casal requereu que um juiz determinasse que todos os colegas de seu filho se vacinassem. O garoto possui uma doença rara que lhe retira a imunidade e a única forma de poder conviver com as pessoas é na certeza de que elas não contrairão doenças que, não obstante não mata-las, para ele será fatal. Não foram bem sucedidos. O juiz decidiu que de acordo com as regras da Califórnia, estado onde se deram os fatos, vacinar os filhos é opção dos pais e não uma obrigação. Por isso não poderia dar uma decisão compelindo-os a vacinar os filhos. 
Vacinas são um produto da tecnologia, a possibilidade de nos inocularmos com germes que provocam doenças de uma forma branda o suficiente para que não contraiamos a doença mas forte o suficiente para provocar nosso sistema imunológico de forma que, no futuro, caso sejamos colocado em contato com esses mesmos gérmens, a doença não se desenvolva. Foi assim que muita gente deixou de morrer por causa de varíola e não ficou com deficiente motora por causa da paralisia infantil.
Mas há pais que entendem que vacinar é anti natural e que as crianças devem ser deixadas a lidar com as doenças naturalmente. 
Mas agora, se realmente queremos uma vida “natural”, sem qualquer coisa criada ou descoberta pela ciência, lidando diretamente com a vida da forma como viviam nossos ancestrais pré tecnologia, acho que devemos ir até as últimas consequências.
Comida orgânica sempre, mesmo lembrando que a humanidade deixou de passar fome somente após a invenção dos agrotóxicos. Até então era comum que alguns surtos de determinados insetos ou plantas devastassem lavouras inteiras. 
O corpo deve estar apto a lugar contra os invasores. Nada de antibióticos, anti-inflamatórios. 
Dor é um processo natural. Quaisquer problemas que a provoquem devem ser visto como algo pelo qual nosso corpo tem que passar. Ficam riscados os analgésicos da nossa vida.
Alguma intervenção cirúrgica é necessária? Bem, apensar do seu caráter anti-natural talvez tenhamos que nos submeter a ela, afinal o instinto de sobrevivência fala mais alto, não é mesmo? Mas aí, nada de analgésicos também. Tudo por uma vida natural. 
Andar de carro? Nem pensar. Nem de bicicleta. Temos duas pernas, não temos? Então, precisamos apenas delas para irmos de um lugar a outro. Ahhh, não é possível atravessar o oceano nadando? Se não é natural, não podemos fazer, ora bolas.
Sapatos? Nem pensar. Impedem um contato mais direto dos nossos pés com o solo. Roupas? Mesma coisa. Nossa pele deve ser nosso meio de contato com o mundo e as roupas vão ficar no meio.
Claro que tudo isso é brincadeira. Nem pensaria em defender cirurgias sem analgésico, infecções sem antibióticos ou qualquer outra coisa que torne nossa vida melhor, mais fácil e mais confortável, ainda que não seja “natural”. 
Mas acho bom pensar bastante antes de achincalhar a tecnologia e tudo de bom que ela nos proporciona. Para quem rejeita de plano a tecnologia em alguns aspectos apenas, sem considerar como e porque ela veio, nem quais os benefícios que trouxe, apesar do seu caráter “anti natural”, é bom ter uma visão geral dos benefícios que temos hoje. Aliás, uma reportagem do site The Atlantic (http://www.theatlantic.com/international/archive/2015/12/good-news-in-2015/421200/) afirma que 2015 foi o melhor ano para o ser humano médio em todos os tempos em que estamos por aqui e 2016 será ainda melhor. A humanidade está mais bem alimentada, mais bem educada, mais saudável, livre, tolerante e mais rica. E devemos boa parte desse sucesso à tecnologia e a todas as coisas anti naturais que ela nos proporcionou, como cesarianas, antibióticos, analgésicos, carros e agrotóxicos. 
 

terça-feira, 8 de março de 2016

O Que Dizem as Leis

Uma das tarefas mais difíceis de quem lida com o direito é interpretar as leis. Não se trata apenas de dizer qual lei vale para uma determinada situação. A questão vai muito além. Trata-se de avaliar o que efetivamente aquela lei quer dizer. Usa-se, inclusive, a expressão “vontade do legislador”: o que os membros do parlamento, quando editaram aquela lei, tinham em mente?
As leis se compõe, como todo símbolo, de um significado e de um significante. O significante é o conjunto de palavras utilizadas para a edição da lei. Significado é o que a lei quer dizer. Considerando que cada palavra é, por sim, um símbolo, a interpretação da lei como um todo leva em conta não só o significado da lei propriamente dito mas o de cada palavra da qual ela se utiliza. 
Como a maioria das leis é mais duradoura do que as situações que elas se propõe a regulamentar, muitas vezes a tarefa de tentar entender o que, de fato, pretendem dizer, assume caráter quase profético.
Mas nem sempre é assim. Muitas vezes, basta verificar o que o legislador queria dizer quando a lei foi editada considerando a realidade vivida por ele na época e o que teria dito hoje, com a realidade de hoje. E também o que cada palavra significava na época em que a lei foi editada e confrontar com o que essa palavra significa hoje. Na maioria das vezes, esse processo é suficiente para se entender o significado da lei sem necessidade de se alterar os significantes propriamente dito. Fica mais difícil se um determinando significante continua com o mesmo significado que tinha quando do início da validade da lei mas a situação que pretende regular se alterou. Nessa hipótese, nada nos resta senão esperar que o legislador se incumba de seu papel e altere a lei.
Há algumas semanas, conversando com um colega, comentávamos a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos da ADI 4277, que, interpretando o artigo 226, § 3º da Constituição Federal, decidiu que esse dispositivo se aplicava, também, à união entre pessoas do mesmo sexo. Diz o texto do § 3º: 
 
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 
..............................................................................................................
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
 
O artigo 226 trata da família e da proteção que ela deve ter do Estado bem como da igualdade entre o homem e a mulher, inexistente na ordem jurídica que  antecedeu a Constituição. E para conceituar família, seja ela constituída formalmente mediante o casamento civil ou apenas de fato, com a união de duas pessoas sem maiores formalidades, morando na mesma casa, referiu-se a “união entre homem e mulher”.
Meu colega sustentava que o Supremo Tribunal Federal não poderia ter alterado a vontade do legislador no sentido de que, para ele, família seria a união entre um homem e uma mulher para estender o conceito a pessoas do mesmo sexo. Para permitir a união entre pessoas do mesmo sexo, deveria-se ter aguardado que o próprio legislador, via Emenda Constitucional, substituísse “homem e mulher” por “duas pessoas”.
Discordei dele pelos motivos que expliquei acima: é possível, nesse caso específico, adequar o significado dos significantes utilizados pelo legislador constitucional à realidade atual, considerando o significado que tinham na realidade vivenciada por ele. 
Em 1987/1988, época em que se discutia a Constituição, família era considerada apenas como sendo a união de um homem e uma mulher. Não obstante haver pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, era uma situação excepcional, muitas vezes não explícita, principalmente pela marginalização que essas pessoas sofriam, e dessa união não surgia nenhum direito, tais como benefícios previdenciários, herança, possibilidade de adotar filhos ou de registrar filho biológico de um dos parceiros como filhos de ambos.
Ao longo desses 28 anos, a união entre pessoas do mesmo sexo começou a fazer parte da realidade cotidiana e lhes foi sendo estendido, aos poucos, o mesmo rol de direitos das outras pessoas, inclusive o de adotarem e registrarem filhos no nome de ambos os parceiros. Esse reconhecimento foi se solidificando no sentido de que o próprio significado da palavra família mudou. Passou a significar a união de duas pessoas, independentemente do sexo. Foi exatamente esse o fundamento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal quando decidiu que é possível a união entre pessoas do mesmo sexo, inclusive para efeitos de registro civil: (...)Tratamento constitucional da instituição da família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. A família como categoria sócio cultural e princípio espiritual Direito subjetivo de constituir família. Interpretação não reducionista. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos(...).
 
Essa interpretação não foi difícil. Família é um símbolo cujo significado vai mudando e não há necessidade de se alterar o significante, como queria meu colega com o § 3º do artigo 226 da Constituição. Mas há muitas situações em que isso não é possível. Mas há situações em que ou o significado de determinado significante permanece o mesmo ou, mesmo tendo se alterado ao longo do tempo, não é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse. E aí, a pretexto de “interpretar” a lei e fazer valer a vontade do legislador, o intérprete, na realidade, faz valer a sua vontade e atribui a determinado significante um significado que ele nunca teve. Ou substitui um significante por outro, cujo significado é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse o do significante substituído. Essa prática foi chamada de Justiça Cósmica por Thomas Sowell sem seu texto The Quest For Cosmic Justice (http://www.tsowell.com/spquestc.html): culpa-se a Sociedade pelas desigualdades entre as pessoas, ainda que essas desigualdades sejam congênitas, culturais, genéticas, sociais, econômicas e afastando-se o que as regras estabelecidas em um Estado de Direito impõe, aplicam-se regras criadas para aquele caso específico, a fim de se “fazer justiça”, na acepção do aplicador do direito naquele momento, em detrimento de todo o restante das pessoas. 
Essa forma de se corromper a intenção do legislador e dar a um determinado significante um significado que ele nunca teve, insere-se na acepção de Justiça Cósmica e produz, a médio e longo prazo, uma injustiça ainda maior na medida em que um número grande de pessoas é prejudicada em detrimento daquele único beneficiário. 
 

A Evidência Silenciosa

Até o descobrimento da Austrália, no Século XVIII, acreditava-se que todos os cisnes eram brancos, porque nunca havia sido visto cisne de outra cor. Partia-se da premissa de que se nunca se viu algo, esse algo não existe. A partir dessa ideia, Nassim Nicholas Taleb, que mora nos Estados Unidos mas nasceu e cresceu no Líbano, escreveu um livro chamado A Lógica do Cisne Negro. O que ele chama de cisne negro é o evento imprevisível, de alto impacto e com possibilidade de contextualização apenas em retrocesso e que vai de encontro a previsões ou definições formuladas apenas mediante observações empíricas. 
Em outras palavras: a ausência de cisnes negros demonstrava, para os europeus, a evidência de que todos os cisnes eram brancos enquanto o que deveria demonstrar é que não havia evidência de cisnes de outra cor além do branco. 
Partindo dessa análise, o autor passa a mostrar como nosso conhecimento da história é incompleto e os eventos que acontecem mundo afora são muito mais complexos e aleatórios do que parecem, e que a contextualização em uma narrativa ocorre apenas posteriormente, nunca antes, exatamente por conta da imprevisibilidade.
Das várias ideias elencadas no livro, quero falar a respeito do que o autor chama de Evidência Silenciosa: aquilo que não levamos em consideração ao tomar uma decisão ou analisar um fato.
Para demonstrar o que é evidência silenciosa, o autor conta que após a devastação de New Orleans pelo furacão Katrina, congressistas foram à televisão dizer que auxiliariam financeiramente a reconstrução das casas e da cidade. Obviamente que o auxílio seria com dinheiro público e não com o deles próprios. Só que não disseram de onde viria o dinheiro, quais atividades ou serviços deixariam de receber o dinheiro a ser utilizado na reconstrução. Taleb sugere, para desenvolver sua ideia, que o dinheiro para a reconstrução poderia vir de pesquisas a respeito da cura para o câncer: diminuindo-se o valor dispendido com as pesquisas para transferi-los para as vítimas. O auxílio das pessoas cujas casas foram destruídas, nessa hipótese, seria feito em detrimento dos milhões que sofrem silenciosamente contra o câncer. Esse silêncio a respeito de onde vem o dinheiro e o que deixará de ser pago ou custeado por ele é a evidência silenciosa.
Nada mais comum. A vida está cheia de exemplos
Um benefício trabalhista que as empresas são obrigadas a concederem a seus empregados as impedem de dar emprego para outras pessoas. A exigência de que qualquer liberalidade por parte da empresa com relação a seus empregados passa a ser considerada salário tira o incentivo para tais liberalidades sejam praticadas de forma regular. 
É o que ocorre quando se defende que determinado serviço público deve ser custeada apenas com dinheiro público, sem cobrança de quaisquer tarifas. Quem defende essa prática não leva em conta se o Estado tem esse dinheiro ou de onde virá o custeio. Porque se o Estado não tiver os valores necessários, deverá levantar empréstimos em instituições financeiras ou instituir novos tributos, o que sairá muito mais caro do que pagar pelo serviço em si. Se não fizer nenhuma dessas opções, deixará de custear alguma outra coisa. E o que é essa outra coisa que deixará de ser custeada nunca é levado em consideração quando alguém defende algo assim.
Um exemplo disso foi o protesto realizado em meados de 2013, em São Paulo, contra o aumento das tarifas do transporte público e repetido, em menor escala, no início do ano, liderado por um grupo de pessoas que se autodenomina “Passe Livre”. Transporte tem custo: combustível, salários, tributos, desgastes de veículos, seguros. Alguém tem que arcar com o custo. Ora, se o combustível, salários e manutenção tem aumento, nada mais natural que a tarifa também sofra aumento. A soma é aritmética. Contudo, quem defende a manutenção da tarifa anterior ou a sua eliminação, obviamente conta com o custeio integral do transporte pelo dinheiro público. Sem levar em conta de onde virá esse dinheiro. E sem considerar que se vier de tributos cujo aumento se deu para esse fim, o custo para cada usuário será muito mais caro.
Como bem falou Margaret Tatcher em um discurso, o Estado não tem fonte de renda. O dinheiro com o qual realiza suas atividades provém de empréstimos ou de impostos. Exigir o aumento de gastos públicos sem levar em conta de onde vem o dinheiro é ignorar a evidência silenciosa que Nassim Nicholas Taleb define no livro citado acima. 
A grande questão é que a evidência silenciosa é silenciosa por algum tempo ou a curto prazo. A médio e longo prazo ela sempre vai fazer barulho. Alguém que utiliza o saldo da conta garantida sem maiores problemas, sem levar em conta que está utilizando um empréstimo e considerando vai receber a conta futuramente, com muitos juros.
Todos os governos populistas, que instituem medidas assistencialistas acabam indo à falência exatamente por ignorarem ou não se importarem com ao evidência silenciosa de que os valores para custeio de tudo devem vir de algum lugar. 
 

quarta-feira, 2 de março de 2016

"Coragem é Pensar por conta própria. Em voz alta. "

Vi no Twitter, outro dia desses, uma frase atribuída a Coco Chanel que dizia mais ou menos o seguinte: “Coragem é pensar por conta própria. Em voz alta”. Pensar a gente pensa o que quiser, como quiser, onde quiser, ninguém fica sabendo e tudo fica bem. Falar o que se pensa é algo muito diferente e  sempre causou problemas a quem ousou pensar por conta própria. Em voz alta.
Há mais ou menos 500 anos, não tanto tempo assim, considerando que o homo sapiens está por aí há cerca de 190 mil anos, falar o que se pensava dava fogueira. Há muito menos tempo, aqui mesmo no Brasil, proporcionava alguns dias nos porões da Ditadura (1964/1985), com direito a tortura e, nem tão raras vezes assim, desaparecimentos inexplicados. 
Atualmente as coisas são bem mais fáceis. Quem fala o que pensa não corre o risco de virar carne queimada nem de experimentar o sadismo alheio. O custo atual é um achincalhamento generalizado via internet e seus rebentos: as redes sociais. Quem ousa falar o que pensa vai ouvir muita coisa, algumas poucas rebatendo o que foi exposto e quase todas as outras atacando a pessoa, a mãe e a família de quem falou. Com um pouco de coragem e ousadia, dá para aguentar. 
Há alguns dias atrás a atriz/escritor Fernanda Torres se envolveu em algo assim.
Ao defender a diferenciação de gêneros homem/mulher (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/) e falar que não há nada demais em uma mulher ouvir um fiufiu de vez em quando, atestando a aprovação do autor do fiufiu, foi bombarbeada de todos os lados por pessoas indignadíssimas dela pensar assim. Não deu conta de manter o que tinha dito. Voltou atrás, fez um mea culpa (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/mea-culpa/) dizendo que disse o que disse porque era a sua visão de mulher branca de classe média. Pediu desculpas.
A polêmica toda me fez pensar. Opinião cada um tem a sua. Defende-se que ter opinião é um direito, ainda que seja  a opinião mais imbecil do mundo. Mesmo que se considere a opinião um direito, acho que qualquer opinião deveria ser formada sem leviandade, com base em fatos, depois de muita ponderação e meditação. "Não é tão fácil adquirir convicções, ou, se chegamos a elas sem fazer esforço, logo se mostram desprovidas de valor e capacidade de resistência. (...) De que servem, no campo intelectual, as convicções apressadas, as conversões fulminantes, os repúdios momentâneos?"(Freud, Conferências Introdutórias à Psicanálise, Editora Companhia das Letras, pag. 326). Nem sempre se faz isso, claro. A grande maioria de nós verbaliza opiniões sobre tudo e todos sem pensar duas vezes. Ou melhor, sem sequer pensar. E aí, quando uma avalanche de críticas formuladas por quem também emitiu opiniões sem fundamento e sem pensamento ataca virulentamente a opinião expressada, vemos o acontecer o que sucedeu a Fernanda Torres: um mea culpa muito feio e uma retratação, rápida e tão sem fundamento quanto a opinião emitida antes.
Quem fala para o público precisa agir como Freud descreve na citação acima pensar antes de emitir uma opinião, meditar a respeito, esforçar-se para que a opinião tenha fundamentos sólidos, ainda que não sejam permantes. Porque depois, a opinião emitida vai ser como a flecha: uma vez publicada, não volta atrás. A não ser em um mea culpa todo rasteiro. E se a pessoa é obrigada a pedir desculpas ou alterar o que disse, podemos ter uma de duas conclusões: ou ela não ponderou bem o que disse, não analisou e sua opinião, nessa hipótese, é sem fundamento, ou ela pensou a respeito e, o que disse, é o que efetivamente pensa mas não teve coragem de defender sua opinião contra os ataques. Faltou coragem. 
Claro, uma opinião bem pensada e bem fundamentada não precisa ser imutável. A vida flui, circunstâncias se alteram. Sempre haverá críticos para quem muda de opinião e para quem se atém às opiniões de sempre. Ainda Freud, no mesmo livro acima, pag. 328: "Quem já mudou de opinião algumas vezes não merece crédito nenhum, porque torna evidente que pode ter se equivocada também em suas afirmações mais recentes - não é assim? Por outro lado, quem se aferra, inamovível, ao que afirmou certa vez, ou quem não se deixa demover com suficiente rapidez daquilo que declarou, é chamado de teimoso e obstinado. O que fazer diante dessas imputações contraditórias da crítica, a não ser permanecer o que se é e se comportar em concordância com o próprio juízo?" .
Ter opinião, portanto, deve ser algo tranquilo, com alicerce, depois de se pensar e analisar o que envolve aquele assunto sobre o qual a convicção se formou. 
Mudar de opinião é bom, sempre que as circunstâncias mudam, sejam elas do pensador sejam da realidade em volta. Manter a opinião também é bom, desde que as circunstâncias  e o pensamento assim o justifiquem.
O que é muito ruim é a opinião formada sem alicerce ou aquela que, com alicerces sólidos, não resiste a críticas externas por falta de coragem do pensador. O que remete à frase que abriu esse texto: coragem é pensar por conta própria. Em voz alta. Quase ninguém tem. Ou até tem. Mas não mantém a coragem depois do achincalhamento.