domingo, 29 de abril de 2018

O Poder de Um Nome



Foi retweetado por uma pessoa que sigo no twitter o seguinte: “Estava sendo atendida por uma médica (que é militar então tem seu nome no jaleco), uma outra mulher perguntou “Porque você não usa o sobrenome de casada?”. E ela subiu na p*** de um salto de 15 que eu não vi mas com certeza tava lá, e respondeu “Porque fui eu quem se formou em medicina, não meu marido.”
Parece que esse post já havia sido publicado antes, em inglês, por outra pessoa, e quem publicou aqui no Brasil só traduziu.
O que me chamou a atenção nem foi o fato de que alguém aparentemente traduziu um post do inglês e postou como se fosse próprio. Foi a frase propriamente dita, de uma superficialidade e contradição que me deixaram dando risada.
A médica não usa o nome de casada porque quem foi na faculdade de medicina foi ela e não o marido. Então tá. Pergunto eu: Por que ela adotou o nome de casada então? Por que não seguiu usando seu nome de solteira?
Como ela usa o nome de solteira, presumo que o nome é o que ela herdou do pai. Outro homem. Nesse caso, e pela lógica do post, quem foi na faculdade de medicina foi o pai dela. E se ela não tem o nome do pai, então quem foi é a pessoa de quem ela herdou o nome.
Gente, ninguém nasce com um nome original. Sempre herdamos de alguém, que já usava esse nome antes. E aí alguém escolhe nosso primeiro nome e herdamos o sobrenome, na maioria das vezes do pai e da mãe (pelo menos aqui no Brasil), ou como na esmagadora maioria dos países, só o do pai, como é meu caso. Então, se formos ver as conquistas pelo nome de quem que ostentamos, nunca seremos nós seus donos, serão sempre de quem pegamos o nome.
Ou seja, ninguém tem nome original. Ele só vai se tornar nosso mesmo quando nós o formos construindo ao longo da vida. E quando construímos um nome, pouco importa de quem ele chegou até nós: marido, pai, mãe, etc.
Quando a Tina Turner se separou do marido, Ike Turner, com quem tinha uma banda, ela abriu mão de qualquer dinheiro ou bem para ficar com o nome dela. Turner era nome dele, não dela, cujo nome de solteira era Anna Mae Bullock. Mas depois de alguns anos tocando com ele, já casada e com o sobrenome dele, ela se tornou maior do que o nome Turner. E aí Turner passou a ser o nome DELA, ainda que ela o tivesse pego do ex marido. Com a Luíza Brunet foi a mesma coisa. Não faço ideia quem foi o primeiro marido, de quem ela adotou o nome. Ela foi além do nome, se tornou maior que ele. Brunet é nome dela, relacionado com ela, usado por ela. A própria filha dela, de outro pai que não o Brunet do nome, também usa Brunet. Por causa da mãe, porque a mãe se tornou maior que o nome e por isso o nome passou a ser dela.
Maria Sklodowska (alguém já ouviu falar dela?), nasceu na Polônia na segunda metade do século XIX, mudou-se para Paris onde conheceu seu marido, tendo adotado o nome dele. Começaram a trabalhar juntos. Ganharam um prêmio Nobel em razão desse trabalho em 1903. Ele morreu em 1906, ao ter a cabeça esmagada pela roda de uma carruagem durante uma tempestade. Ela continuou o trabalho que tinham começado. Na década de 20 ganhou outro Nobel, dessa vez sozinha. A única pessoa a ter ganho dois prêmios Nobel em áreas diferentes da ciência. Ela é conhecida pelo nome de casada, Marie Curie. Também tornou-se maior que o nome, apropriou-se do nome do marido que passou a ser dela, porque ela é a única responsável pelas conquistas que a consagraram. E quando alguém falam em Curie, é ela quem vem primeiro à mente de quem fala, não ele.
Tem uma história dela que me deixa com vergonha alheia das feminzais que a cada nove palavras, nove são “patriarcado” e que além de vociferar contra os homens nunca conquistaram nada de significante.
Foi o seguinte (já contei essa história aqui antes): Quando seu segundo prêmio Nobel foi anunciado, ela estava em Solvay, na Bélgica, participando de uma conferência de cientistas. Enquanto estava lá, alguém entrou em seu apartamento em Paris e deu para os tabloides provas (na maioria, cartas) de que ela estava tendo um caso com um colega casado. O comitê do Nobel entrou em contato com ela, pedindo para que ela não fosse receber o prêmio por conta do escândalo. Ela respondeu muito calmamente que a vida particular dela não tinha nada a ver com a profissional, e que iria receber o prêmio sim. E foi.
Por isso, lembrem-se: um nome é só um nome se nós não nos tornarmos maiores do que ele e o engrandecermos com nossas conquistas, independentemente do nome ter vindo do pai, mãe, marido. Porque aí, ele vai continuar sendo apenas o nome de quem nos deu.
Um homem não vai dar o nome dele a uma mulher que ele não a considere digna, e uma mulher não vai adotar o nome do marido se não o considerar digno o suficiente para ter o nome dele ao final do nome dela. Isso é uma demonstração de amor.
O que vamos fazer do nome que nos deram quando criança ou que adotamos ao nos casar é o que vai mostrar o que fizemos da nossa vida propriamente dita.
Digo tudo isso de cima dos meus saltos de 15 cm.  

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O Supremo Legisla? Sim. E é necessário que assim o seja.


O Supremo legisla? Sim, e é necessário que assim o seja.

O Brasil é uma democracia. Está lá, no preâmbulo da Constituição de 1988. Democracia é o governo do povo pelo povo, conforme  sua origem grega: demos=povo; cracia=governo. No período em que surgiu, em Atenas no século V antes de Cristo, a democracia era exercida de uma forma que podemos denominar de pura ou direta, pois todos os cidadãos participavam diretamente das decisões e administração daquela Cidade Estado. É importante lembrar, porém, que esses cidadãos eram uma minoria bem pequena, constituída exclusivamente por alguns homens, os cidadãos. Mulheres, escravos e estrangeiros não eram cidadãos e não faziam parte da vida pública da cidade.

As democracias modernas, das quais o Brasil faz parte, não são mais aquelas como a ateniense, com o governo exercido diretamente pelo povo. Nem poderia ser assim, já que os países hoje detém populações de milhões. Por isso, ao longo dos séculos desenvolveu-se a ideia de democracia representativa, na qual o povo elege representantes para administrar seus interesses e fazer suas leis. Paralelamente, desenvolveu-se, também, o conceito de direitos do ser humano, assim entendidos como aqueles direitos que decorrem da própria natureza de ser humano, independentemente de raça, credo, orientação sexual, nacionalidade.

Se a democracia é o governo do povo pelo povo e seu exercício deve ser feito por meio de representantes, foi-se estabelecendo, também, formas de exercício desse poder  e se chegou ao que hoje se denomina tripartição de poderes. O Poder, que é uno, é exercido por três Poderes distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário.A tripartição de Poderes não é idêntica em todos os lugares, nem as atribuições de cada Poder, mas em linhas gerais, a ideia é a mesma e vale para todos.

No Brasil, o Poder Executivo Administra, o Legislativo elabora leis (sentido lato) e o Judiciário julga. Nenhuma das atribuições de cada Poder é exercida de forma exclusiva. O Legislativo julga o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, o Executivo julga quando preside os Procedimentos Administrativos e legisla ao editar regulamentos e resoluções, além de Medidas Provisórias, o Judiciário legisla ao editar seus Regimentos Internos e todos os poderes administram seus quadros de servidores e respectivos orçamentos.

Contudo, quando se diz que o Supremo está legislando, diz-se no sentido de que estaria usurpando a função do Poder Legislativo, ao estabelecer regras gerais de conduta que, a princípio, deveriam ser estabelecidas pelo Poder que legisla.

De fato. Algumas das decisões do Supremo tem natureza legislativa e devem ser observadas das por todos. Contudo, afirmar que está usurpando as funções do Legislativo não condiz com a verdade e se está esquecendo que essa conduta faz parte das atribuições desse Tribunal.

O Brasil tem uma cultura fundada na Religião Católica e uma população crescente de cristãos evangélicos. Como as religiões em geral fornecem boa  parte do substrato dos costumes e da conduta moral de um povo, suas regras vão se entranhando em uma sociedade e ao longo do tempo podem perder o caráter religioso sem perder seu conteúdo. A moralidade católica, arraigada em nossa cultura e costumes, assim como a moralidade estabelecida pelas Igrejas Evangélicas, faz com que os brasileiros, em sua grande maioria, tenham postura conservadora quando se trata de questões como casamento entre pessoas do mesmo sexo aborto de fetos com anencefalia, duas das questões decididas pelo Supremo e que tiveram efeito contra todos, ou seja, o mesmo efeito de uma lei aprovada pelo Legislativo.

A grande maioria da população manifestaria seu desacordo com a permissão para que pessoas do mesmo sexo se casem ou procedam ao aborto de quaisquer fetos, ainda que portadores de anomalia que inviabilizariam sua vida., se não fosse o policiamento do politicamente correto, que inibe a livre expressão de pensamento e opinião, sob medo de achincalhamento em redes sociais ou publicamente.

É comum, também, que as pessoas desejem que seja ilícito ou mesmo crime, condutas que consideram erradas ou pecado. Daí que quem é contra casamento de pessoas do mesmo sexo ou aborto de fetos com anencefalia, em regra, desejaria que tais condutas fossem proibidas ou, na segunda hipótese, criminalizadas.

Mas o Brasil é um estado laico, apartado de qualquer religião, ainda que garanta a liberdade de culto. Por isso, fundamentos religiosos não podem ser levados em consideração quando se analisa questões como essas duas que apontei acima.

É importante salientar, ainda, que a democracia, tal como praticada em nosso País, tem potencial para se tornar uma ditadura da maioria. E, nessa condição, detém um potencial enorme para oprimir as minorias, inclusive lhes retirando o exercício de direitos que lhe são inerentes em razão da sua condição de seres humanos. E é para evitar essa ditadura da maioria oprimindo a minoria que o Supremo deve atuar, legislando se for o caso.

Considerando que a esmagadora maioria da população brasileira manifesta um conservadorismo originário da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas com relação a costumes e à moral, é intuitivo que elegerá legisladores com o mesmo entendimento. Há legisladores com postura e opiniões diferentes mas, na condição de representantes de uma minoria, não tem condições de neutralizar a ditadura da maioria.  Por isso, a possibilidade de que esses legisladores eleitos por uma maioria que, no fundo, gostaria que casamento entre pessoas do mesmo sexo continuasse proibido e que o aborto de anencéfalos continuasse sendo crime, mantivessem a legislação como antes e muito grande e permitiria a violação do direito dessas duas minorias que, por serem minorias, estariam desamparadas.

Entra em cena a Suprema Corte, chamada a atuar para fazer garantir a essas minorias direitos fundamentais como constituir uma família ou abortar um feto sem condições de vida pós nascimento. A autorização para que pessoas do mesmo sexo se casassem ou para que grávidas de fetos com anencefalia abortassem dificilmente seria dada mediante leis aprovadas por um legislativo que representa a grande maioria conservadora.

Essa postura não é exclusiva do Brasil. A Suprema Corte dos Estados Unidos já atuou assim quando determinou o fim da segregação racial ou decidiu a favor do direito das mulheres a abortarem. O fundamento dessas decisões, também com caráter legislativo, foi a proteção de uma minoria que, sem essa proteção, ficaria à mercê da ditadura da maioria.

Por isso, repetido a frase do início deste post: O Supremo legisla? Sim. E é necessário que assim o seja.

PS1: as ideias para este post foram surgindo durante discussões com meu marido, João Carlos. Mas devo a ele as ideias sobre a função do Supremo na garantia de direitos fundamentais a minorias em oposição à maioria e ao fato de que essa atribuição é exercida pela Suprema Corte dos Estados Unidos há muito tempo. Obrigada e um beijo.

PS2: para ilustra o post, escolhi uma foto do Ministro Teori Zavascki porque admiro sua postura tranquila e ponderada, além da capacidade técnica.

domingo, 3 de julho de 2016

A Vontade do Texto

O Deputado Federal Jair Bolsonaro, no plenário da Câmara, falou para a também Deputada, Maria do Rosário: "Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, [...] e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece." O Promotor de Justiça Alexandre Couto Joppert, membro da banca do 34o Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, ao elaborar questão a respeito de estupro com concurso de agentes, disse que aquele a quem incumbiu a conjunção carnal, ficou com "a melhor parte, dependendo da vítima". Sua descrição do crime, ao elaborar a questão, foi: ""Um segura, outro aponta arma, outro guarnece a porta da casa, outro mantém a conjunção - ficou com a melhor parte, dependendo da vítima - mantém a conjunção carnal, e o outro fica com o carro ligado para assegurar a fuga.""

Por conta da fala para Maria do Rosário, Jair Bolsonaro se tornou réu em ação criminal no Supremo Tribunal Federal pois o relator entendeu que sua fala incita a prática do estupro, além de ofender a honra da colega. Já Alexandre Couto Joppert foi afastado da banca do 34o Concurso.

Jair Bolsonaro, em sua defesa no Supremo Tribunal Federal, afirmou que não teve intenção de incitar estupro, que sua fala não diz isso.

O Promotor Alexandre, por sua vez, emitiu nota na qual afirma: "(...) Devo ressaltar que a proferi sem qualquer intenção, mínima que seja, de patrocinar menosprezo ou desrespeito de gênero".

Citei esses dois exemplos de falas com consequências muito além das que, muito provavelmente, seus autores previam para falar da "Vontade do Texto".

Essa expressão é usada por Umberto Eco em seu livro "Os Limites da Intepretação"* (Editora Perspectiva, 2004), ao lado da vontade do autor e da vontade do leitor. Vontade do autor e vontade do leitor são conceitos quase que intuitivos: a primeira reflete a intenção do autor, o que ele efetivamente quis dizer ao escrever/falar o que escreveu ou falou. A segunda, a intenção do leitor, que extrai do texto o que gostaria que o texto dissesse. Já a intenção do texto é a interpretação que o texto permite aos seus leitores independentemente da vontade do autor ou do leitor.  A título de exemplo da vontade do texto, Umberto Eco conta que em uma conferência, uma pessoa lhe perguntou se o personagem Casaubon de O Pêndulo de Foucault havia sido uma referência ao personagem de mesmo nome, de Middlemarch, da George Eliot. Eco respondeu que não. O nome era referência a Isaac Casaubon, estudioso clássico que viveu entre 1559 e 1614. No entanto, ele admitiu à pessoa que o questionou, que seu personagem Casaubon de O Pêndulo de Foucault de fato remetia ao personagem de Middlemarch, não obstante não ter tido nenhuma intenção nesse sentido. Mas é uma expressão da vontade do texto.

Nos dois exemplos de falas que citei no início deste texto, ambos os seus autores insistem que não tiveram a intenção de dizer aquilo que a maioria das pessoas compreendeu. Mas as palavras usadas, independentemente da intenção de cada um deles, permitem que se chegue às interpretações gerais a respeito, pois ambos os textos (falas) assim o querem.

Ao dizer que não estupraria a colega Maria do Rosário porque ela não "merecia", o Deputado Jair Bolsonaro utilizou um termo que, livre de qualquer intenção sua ou de seus ouvintes/leitores, indica que as demais mulheres merecem ser estupradas.

Volto a Umberto Eco. No livro citado, ele define como interpretação literal aquela que vem em primeiro lugar no dicionário ou aquela que um cidadão comum nos dará se lhe perguntarmos o significado de uma palavra. "Merecer", de acordo com a primeira definição dada pela versão online do Dicionário Michaelis é "obter algo por seus méritos" (http://michaelis.uol.com.br/busca?id=D971D). Se digo que uma mulher não obterá algo porque não merece, o texto quer me dizer que se ela o merecesse, obteria esse algo. Se o que ela não merece é ser estuprada porque não tem méritos para tanto, é porque as mulheres que são estupradas o merecem. É essa a vontade do texto. Se foi a vontade do Deputado, na condição de autor, quando o disse, somente ele pode saber. E ele diz que não foi. Se pessoas acham que ele estava sendo eloquente, que na realidade não quis dizer que há mulheres que merecem ser estupradas, trata-se da vontade de cada leitor. Mas o texto, de fato, permite essa interpretação: de que há mulheres que merecem ser estupradas e, outras, não. E essa vontade é livre tanto da vontade do autor quanto da do leitor.

O mesmo se dá com a fala do Promotor de Justiça Alexandre Couto Joppert. Quando afirmou que o partícipe a quem coube a conjunção carnal em um hipotético caso de estupro, ficou com a melhor parte dependendo da vítima, utilizou uma expressão que valora a conjunção carnal no estupro como sendo boa, ou pelo menos melhor do que as funções dos demais partícipes: segurar a mulher, apontar a arma, guarnecer a porta, manter o veículo em funcionamento para facilitar a fuga. Se sua intenção não era "patrocinar menosprezo ou desrespeito", somente ele sabe. Se leitores/ouvintes acham que foi apenas eloquente ou emitiu opinião do ponto de vista do criminoso, é a vontade do leitor. Mas o texto/fala em si permite a interpretação que foi dada pelas pessoas em geral: o Promotor considera que a conjunção carnal no estupro é algo bom e, portanto, foi desrespeitoso com as vítimas de estupro.

É preciso cuidado ao emitirmos uma fala ou redigirmos um texto. As palavras tem vontade própria e a partir do momento de sua emissão fogem ao nosso controle e passam a ter uma vontade própria. Mas quem vai arcar com as consequências da vontade do texto somos nós, seus emissores.

domingo, 10 de abril de 2016

Açúcar, Esse Monstro

 

Atualmente há muita gente em cruzadas a respeito de muitas coisas. Gostaria que não houvesse. Porque é muito chato. E sem graça. De onde essas pessoas tiram tempo, energia e disposição para tentar convencer o resto do mundo a deixar de fazer ou a fazer alguma coisa? Como parar de comer açúcar, sal, glúten, gorduras? Ou a não se vacinarem nem vacinarem seus filhos? Ou a não tomarem antibióticos? A não se submeterem a cesarianas mesmo estando grávidas de décuplos? A não beberem álcool? A não usarem jeans? A não andarem de carro, só de bicicleta?

E sempre que leio a respeito de alguma nova cruzada levanto as sobrancelhas. De desconfiança. A última vez foi hoje. Uma senhora australiana, Sarah Wilson, descobriu-se viciada em açúcar. Isso mesmo. Nada de drogas tradicionais como cocaína, heroína, crack, a boa e velha maconha, LSD. Seu motivo de queda foi o nosso querido e amado açúcar. Viciou-se nele. Ao se descobrir viciada nessa droga, a senhora Sarah decidiu deixar o açúcar de lado. Adverte: não era viciada nos açúcares ruins, só nos bons. E eu que nem sabia que existem açúcares bons e ruins. Sempre achei todos muito bons.

Na reportagem a respeito da cruzada da Senhora Sarah, publicada na edição de hoje do jornal O Globo (http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/somos-todos-prisioneiros-do-acucar-diz-sarah-wilson-autora-de-best-seller-19054464), ela conta como seu vício a fez mudar de vida, a deixar de lado essa substância tão aterrorizante. Escreveu um livro, claro. E conta que os australianos estão particularmente engajados na discussão sobre o açúcar. Nada mais natural. Imagino que os habitantes daquele gostoso país não tenham algo melhor do que frequentar aquelas  praias, aproveitar o sol, os cangurus, o surfe, o deserto vermelho, para participarem de discussões tão profícuas e importantes como essa, a respeito desse  vilão horroroso: o açúcar.

Fiquei assustadíssima, claro. Jamais achei que algo tão doce e tão saboroso fosse droga. Imagina. Sempre foi a matéria prima daquilo que a vida tem de melhor. Quando vi a foto da Senhora Sarah, na frente de uma banca de frutas saudáveis pensei: trocaria todas por uma colher de doce de leite bem pastoso. Ou um bombom de licor de cereja. Ou uma torta mousse de limão.  Acho que sou irrecuperável. Se houvesse um CID para dependentes em açúcar, eu já estaria aposentada. Por dependência química.

Mas não a senhora Sarah. Depois que conseguiu superar o vício físico, conseguiu superar o vício emocional, substituindo lanches doces por salgados. Imagino que um sanduíche de pão de centeio, beterraba, cenoura, pepino temperado com dois grãos de sal e óleo de girassol seja um substituto perfeitamente aceitável  por uma trufa de cereja (ahhhh as trufas de cereja....).

A Senhora Sarah continua contando que hoje leva uma vida muito mais saudável, comendo o que ela chama de "comida de verdade": nada que venha em latas. E que nenhum adoçante é bom. Fiquei imaginando o que a coca zero que eu bebi no jantar está provocando no meu corpo...

Como ninguém é de ferro, a senhora Sarah tem suas recaídas no vício do açúcar. Mas anota essas recaídas. E sugere que ninguém seja duro consigo mesmo. Entendo. O que não entendo é a necessidade de se escrever um livro para tentar convencer as pessoas de que comer açúcar é ruim e que é um vício. E pior, propor um programa de reabilitação. Porque, como disse no início deste texto, não consigo entender o que leva uma pessoa a deixar sua vida de lado para tentar doutrinar as demais a respeito do que devem ou não comer, do que devem vestir, do que devem fazer. Tenho essa dificuldade porque sou adepta da liberdade de cada pessoa em viver como bem entende. E do direito de cada um em arcar com as consequências das suas escolhas. Inclusive com uma eventual diabetes.

Enquanto isso, preciso conversar com os restos do Ovo de Páscoa. Normal. Com açúcar. Muito açúcar.

sábado, 12 de março de 2016

Cansada de Mimimi

Estou cansada dessa coisa mimimi que anda por aí. Gente que se ofende porque se dá os nomes corretos às coisas. Ou porque a realidade é o que é e não a sala de estar da casa da mamãe com bolinho e chazinho. Vejam bem: o mundo não é e nunca foi nossa zona de conforto. Aliás, se pensarmos bem, zona de conforto é algo bem restrito e que só existe dentro da nossa cabeça. 

Mas a existência desse povo mimimi está deixando a coisa tão bizarra que estudantes na Universidade de Harvard, eleita várias vezes a melhor do mundo, estão se sentindo ofendidos com expressões usadas pelos professores. A história foi contada por João Pereira Coutinho na coluna "Como Destruir Um Filho", publicada na Folha de São Paulo em 22/09/2015. E não se trata de palavrões ou palavras de baixo calão. Trata-se de poupá-los de algo que possa perturbar seu bem estar emocional, como utilizar a expressão "violar a lei", porque "violar" é algo ofensivo. 

Bem estar emocional é algo ao qual os alunos acreditam piamente que tem direito. E como todos que se arvoram algum direito, também acreditam que alguém (normalmente a família, sociedade, governo, professores) tem a obrigação (não param para pensar de onde esse algo seria retirado nem se realmente tem esse direito) de lhes proporcionar. No caso, bem estar emocional. Algo assim: o professor de literatura deve avisar que na obra O Grande Gatzby de Scott Fitzgerald há misoginia e abusos físicos. Fico imaginando que tipo de preparação se deveria dar aos alunos antes de lerem Uma Canção de Gelo e Fogo de George Martin.
A coluna me veio à memória lendo Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916-1917) do grande Freud, publicada pela Companhia das Letras, 2014. Ao falar para uma plateia composta de pessoas de ambos os sexos na segunda década do século XX, ele adverte que vai falar sobre sexo mas que todos ali são adultos, portanto nada de pudores nem de pitis. Transcrevo o trecho: "Como esta é a primeira vez, nestas conferências, que falamos de conteúdos da vida sexual, devo prestar contas aos senhores sobre que tratamento pretendo dar a esse tema. A psicanálise não vê motivo para dissimulações e alusões, julga não ser necessário que nos envergonhemos de abordar assunto tão importante; crê, portanto, que correto e decente é chamar as coisas pelo nome e espera, assim, manter distantes quaisquer pensamentos paralelos perturbadores. O fato de estarmos falando a uma plateia composta de membros de ambos os sexos nada modificará nessa nossa postura. Assim como não existe ciência in usum delphini, tampouco existe ciência para mocinhas, e as damas que aqui se encontram já indicaram mediante sua presença nesta sala de aula que desejam ser equiparadas aos homens".

Falando para uma plateia mista em uma época na qual as mulheres ainda usavam espartilho e saias longas, não costumavam trabalhar e imperava o machismo, as palavras dele adquirem um peso muito diferente do que se tivessem sido ditas hoje. E a referência a mocinhas se deu porque as mulheres na época em que ele viveu eram tão reprimidas sexualmente que desenvolviam uma doença - a histeria - que se confunde, inclusive, com o próprio início da psicanálise. Tratava-se de uma doença com sintomas físicos e psicológicos provocada pela repressão sexual.

Mas com esse mimimi com relação à vida em geral, a capacidade de sair da zona de conforto, de lidar com a realidade tal como ela se apresenta, sem almofadas ou parachoques é algo que temo que acabemos perdendo. Adam Smith disse que a riqueza produzida pela economia de mercado nos transformaria todos em uns mimados. Mas ainda assim, todo esse bem estar proporcionado pela tecnologia (2015 foi o melhor ano da história para o homem médio, conforme a Revista Atlantic) está deixando todo mundo meio bobo. E se ofendendo por nada. E dando pitis.
Imagino o que Freud diria hoje da atitude mimimi de pessoas pós espartilho, pós revolução sexual (anos 60), pós revolução tecnológica, pós internet, pós redes sociais. Talvez falasse que estamos precisando de uma guerra ou duas. De um pouco de realidade. De um pouco de vergonha na cara.

Por Uma Vida Natural

De vez em quando leio na internet matérias contando de polêmicas entre defensores do parto natural e defensores da cesariana. Os primeiros, tentando impor aos segundos sua visão de que o parto natural, por ser natural, assim entendido um procedimento instituído pela própria natureza, é melhor para todo mundo: mães e bebês. Opinião é igual derièrre: cada um tem a sua. Mas é preciso sair um pouco da superficialidade e analisar se o que é reputado natural por ter sido decretado pelo nosso lado biológico é melhor mesmo.
Falando de parto. Do que li a respeito das discussões a respeito do parto natural e do parto via cesariana, o primeiro é natural se feito sem auxílio médico, no máximo com o auxílio de doulas ou parteiras, e em casa. Ora, acredito que os defensores da prática se esqueceram que parto era a principal causa de morte das mulheres, até a descoberta da anestesia e o início de seu uso em cirurgias em meados do século XIX e também o aperfeiçoamento das cesarianas, permitindo a extração de bebês quando o parto “natural” se tornava inviável. E antes que se defenda que o parto natural só é recomendável se as condições físicas da mãe e do bebê assim o permitirem, deve sempre ser lembrado que muitas das complicações do parto ocorrem na hora, sem qualquer possibilidade de terem sido previstas antes e exigem solução imediata. Para quem está em casa, chegar ao hospital e estar em uma mesa de cirurgia para a famigerada cesariana pode se dar tarde demais, principalmente se mora em uma cidade grande com trânsito complicado.
No caso específico das cesarianas, uma técnica que modifica uma situação muito difícil para as mulheres, permitindo que pudessem ter mais filhos sem que isso fosse o principal risco de óbito para elas, passa a ser demonizada exatamente por não ser reputada “natural”. E isso não acontece somente com as cesarianas.
No filme Meia Noite em Paris, o personagem de Owen Wilson, Gil, sente-se frustrado nos anos 2000 e anseia por viver nos anos 20, entre aqueles que considerava os grandes gênios – Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Salvador Dali, Man Ray -. Ele consegue realizar o desejo entrando em um carro que o transporta para essa década. Já nos anos 20, apaixona-se por uma moça, Adriana, que anseia em viver na Belle Époque (período de alta expansão cultural na Europa, que vai de 1871 até o início da 1ª Guerra Mundial, em 1914). Pegando carona em uma carruagem, os dois vão parar exatamente na Belle Époque, onde os escritores que encontram anseiam por viver na época de Michelangelo. Gil tem uma revelação: o presente é um pouquinho insatisfatório porque a vida é um pouquinho insatisfatória. E o argumento que ele dá a Adriana para retornar ao século XX é que aquelas pessoas, entre o final do século XIX e o início do século XX, sequer conheciam antibióticos.
Antibióticos permitiram que hoje as pessoas não morressem mais de doenças infecto contagiosas, como era a regra até a descoberta da penicilina em 1928. Toda uma literatura foi feita no século XIX a respeito de pessoas que morriam de tuberculose. É raro alguém morrer de tuberculose agora. É mais comum morrerem de câncer, problemas cardíacos, complicações decorrentes de diabetes ou de vício em entorpecentes. Mesmo assim, antibióticos, assim como as cesarianas, são consideradas coisas ruins por um número assustadoramente alto de pessoas.
Lembro também de uma polêmica recente nos Estados Unidos. Um casal requereu que um juiz determinasse que todos os colegas de seu filho se vacinassem. O garoto possui uma doença rara que lhe retira a imunidade e a única forma de poder conviver com as pessoas é na certeza de que elas não contrairão doenças que, não obstante não mata-las, para ele será fatal. Não foram bem sucedidos. O juiz decidiu que de acordo com as regras da Califórnia, estado onde se deram os fatos, vacinar os filhos é opção dos pais e não uma obrigação. Por isso não poderia dar uma decisão compelindo-os a vacinar os filhos. 
Vacinas são um produto da tecnologia, a possibilidade de nos inocularmos com germes que provocam doenças de uma forma branda o suficiente para que não contraiamos a doença mas forte o suficiente para provocar nosso sistema imunológico de forma que, no futuro, caso sejamos colocado em contato com esses mesmos gérmens, a doença não se desenvolva. Foi assim que muita gente deixou de morrer por causa de varíola e não ficou com deficiente motora por causa da paralisia infantil.
Mas há pais que entendem que vacinar é anti natural e que as crianças devem ser deixadas a lidar com as doenças naturalmente. 
Mas agora, se realmente queremos uma vida “natural”, sem qualquer coisa criada ou descoberta pela ciência, lidando diretamente com a vida da forma como viviam nossos ancestrais pré tecnologia, acho que devemos ir até as últimas consequências.
Comida orgânica sempre, mesmo lembrando que a humanidade deixou de passar fome somente após a invenção dos agrotóxicos. Até então era comum que alguns surtos de determinados insetos ou plantas devastassem lavouras inteiras. 
O corpo deve estar apto a lugar contra os invasores. Nada de antibióticos, anti-inflamatórios. 
Dor é um processo natural. Quaisquer problemas que a provoquem devem ser visto como algo pelo qual nosso corpo tem que passar. Ficam riscados os analgésicos da nossa vida.
Alguma intervenção cirúrgica é necessária? Bem, apensar do seu caráter anti-natural talvez tenhamos que nos submeter a ela, afinal o instinto de sobrevivência fala mais alto, não é mesmo? Mas aí, nada de analgésicos também. Tudo por uma vida natural. 
Andar de carro? Nem pensar. Nem de bicicleta. Temos duas pernas, não temos? Então, precisamos apenas delas para irmos de um lugar a outro. Ahhh, não é possível atravessar o oceano nadando? Se não é natural, não podemos fazer, ora bolas.
Sapatos? Nem pensar. Impedem um contato mais direto dos nossos pés com o solo. Roupas? Mesma coisa. Nossa pele deve ser nosso meio de contato com o mundo e as roupas vão ficar no meio.
Claro que tudo isso é brincadeira. Nem pensaria em defender cirurgias sem analgésico, infecções sem antibióticos ou qualquer outra coisa que torne nossa vida melhor, mais fácil e mais confortável, ainda que não seja “natural”. 
Mas acho bom pensar bastante antes de achincalhar a tecnologia e tudo de bom que ela nos proporciona. Para quem rejeita de plano a tecnologia em alguns aspectos apenas, sem considerar como e porque ela veio, nem quais os benefícios que trouxe, apesar do seu caráter “anti natural”, é bom ter uma visão geral dos benefícios que temos hoje. Aliás, uma reportagem do site The Atlantic (http://www.theatlantic.com/international/archive/2015/12/good-news-in-2015/421200/) afirma que 2015 foi o melhor ano para o ser humano médio em todos os tempos em que estamos por aqui e 2016 será ainda melhor. A humanidade está mais bem alimentada, mais bem educada, mais saudável, livre, tolerante e mais rica. E devemos boa parte desse sucesso à tecnologia e a todas as coisas anti naturais que ela nos proporcionou, como cesarianas, antibióticos, analgésicos, carros e agrotóxicos. 
 

terça-feira, 8 de março de 2016

O Que Dizem as Leis

Uma das tarefas mais difíceis de quem lida com o direito é interpretar as leis. Não se trata apenas de dizer qual lei vale para uma determinada situação. A questão vai muito além. Trata-se de avaliar o que efetivamente aquela lei quer dizer. Usa-se, inclusive, a expressão “vontade do legislador”: o que os membros do parlamento, quando editaram aquela lei, tinham em mente?
As leis se compõe, como todo símbolo, de um significado e de um significante. O significante é o conjunto de palavras utilizadas para a edição da lei. Significado é o que a lei quer dizer. Considerando que cada palavra é, por sim, um símbolo, a interpretação da lei como um todo leva em conta não só o significado da lei propriamente dito mas o de cada palavra da qual ela se utiliza. 
Como a maioria das leis é mais duradoura do que as situações que elas se propõe a regulamentar, muitas vezes a tarefa de tentar entender o que, de fato, pretendem dizer, assume caráter quase profético.
Mas nem sempre é assim. Muitas vezes, basta verificar o que o legislador queria dizer quando a lei foi editada considerando a realidade vivida por ele na época e o que teria dito hoje, com a realidade de hoje. E também o que cada palavra significava na época em que a lei foi editada e confrontar com o que essa palavra significa hoje. Na maioria das vezes, esse processo é suficiente para se entender o significado da lei sem necessidade de se alterar os significantes propriamente dito. Fica mais difícil se um determinando significante continua com o mesmo significado que tinha quando do início da validade da lei mas a situação que pretende regular se alterou. Nessa hipótese, nada nos resta senão esperar que o legislador se incumba de seu papel e altere a lei.
Há algumas semanas, conversando com um colega, comentávamos a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos da ADI 4277, que, interpretando o artigo 226, § 3º da Constituição Federal, decidiu que esse dispositivo se aplicava, também, à união entre pessoas do mesmo sexo. Diz o texto do § 3º: 
 
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 
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§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
 
O artigo 226 trata da família e da proteção que ela deve ter do Estado bem como da igualdade entre o homem e a mulher, inexistente na ordem jurídica que  antecedeu a Constituição. E para conceituar família, seja ela constituída formalmente mediante o casamento civil ou apenas de fato, com a união de duas pessoas sem maiores formalidades, morando na mesma casa, referiu-se a “união entre homem e mulher”.
Meu colega sustentava que o Supremo Tribunal Federal não poderia ter alterado a vontade do legislador no sentido de que, para ele, família seria a união entre um homem e uma mulher para estender o conceito a pessoas do mesmo sexo. Para permitir a união entre pessoas do mesmo sexo, deveria-se ter aguardado que o próprio legislador, via Emenda Constitucional, substituísse “homem e mulher” por “duas pessoas”.
Discordei dele pelos motivos que expliquei acima: é possível, nesse caso específico, adequar o significado dos significantes utilizados pelo legislador constitucional à realidade atual, considerando o significado que tinham na realidade vivenciada por ele. 
Em 1987/1988, época em que se discutia a Constituição, família era considerada apenas como sendo a união de um homem e uma mulher. Não obstante haver pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, era uma situação excepcional, muitas vezes não explícita, principalmente pela marginalização que essas pessoas sofriam, e dessa união não surgia nenhum direito, tais como benefícios previdenciários, herança, possibilidade de adotar filhos ou de registrar filho biológico de um dos parceiros como filhos de ambos.
Ao longo desses 28 anos, a união entre pessoas do mesmo sexo começou a fazer parte da realidade cotidiana e lhes foi sendo estendido, aos poucos, o mesmo rol de direitos das outras pessoas, inclusive o de adotarem e registrarem filhos no nome de ambos os parceiros. Esse reconhecimento foi se solidificando no sentido de que o próprio significado da palavra família mudou. Passou a significar a união de duas pessoas, independentemente do sexo. Foi exatamente esse o fundamento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal quando decidiu que é possível a união entre pessoas do mesmo sexo, inclusive para efeitos de registro civil: (...)Tratamento constitucional da instituição da família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. A família como categoria sócio cultural e princípio espiritual Direito subjetivo de constituir família. Interpretação não reducionista. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos(...).
 
Essa interpretação não foi difícil. Família é um símbolo cujo significado vai mudando e não há necessidade de se alterar o significante, como queria meu colega com o § 3º do artigo 226 da Constituição. Mas há muitas situações em que isso não é possível. Mas há situações em que ou o significado de determinado significante permanece o mesmo ou, mesmo tendo se alterado ao longo do tempo, não é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse. E aí, a pretexto de “interpretar” a lei e fazer valer a vontade do legislador, o intérprete, na realidade, faz valer a sua vontade e atribui a determinado significante um significado que ele nunca teve. Ou substitui um significante por outro, cujo significado é exatamente o que o intérprete gostaria que fosse o do significante substituído. Essa prática foi chamada de Justiça Cósmica por Thomas Sowell sem seu texto The Quest For Cosmic Justice (http://www.tsowell.com/spquestc.html): culpa-se a Sociedade pelas desigualdades entre as pessoas, ainda que essas desigualdades sejam congênitas, culturais, genéticas, sociais, econômicas e afastando-se o que as regras estabelecidas em um Estado de Direito impõe, aplicam-se regras criadas para aquele caso específico, a fim de se “fazer justiça”, na acepção do aplicador do direito naquele momento, em detrimento de todo o restante das pessoas. 
Essa forma de se corromper a intenção do legislador e dar a um determinado significante um significado que ele nunca teve, insere-se na acepção de Justiça Cósmica e produz, a médio e longo prazo, uma injustiça ainda maior na medida em que um número grande de pessoas é prejudicada em detrimento daquele único beneficiário.