terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O Supremo Legisla? Sim. E é necessário que assim o seja.


O Supremo legisla? Sim, e é necessário que assim o seja.

O Brasil é uma democracia. Está lá, no preâmbulo da Constituição de 1988. Democracia é o governo do povo pelo povo, conforme  sua origem grega: demos=povo; cracia=governo. No período em que surgiu, em Atenas no século V antes de Cristo, a democracia era exercida de uma forma que podemos denominar de pura ou direta, pois todos os cidadãos participavam diretamente das decisões e administração daquela Cidade Estado. É importante lembrar, porém, que esses cidadãos eram uma minoria bem pequena, constituída exclusivamente por alguns homens, os cidadãos. Mulheres, escravos e estrangeiros não eram cidadãos e não faziam parte da vida pública da cidade.

As democracias modernas, das quais o Brasil faz parte, não são mais aquelas como a ateniense, com o governo exercido diretamente pelo povo. Nem poderia ser assim, já que os países hoje detém populações de milhões. Por isso, ao longo dos séculos desenvolveu-se a ideia de democracia representativa, na qual o povo elege representantes para administrar seus interesses e fazer suas leis. Paralelamente, desenvolveu-se, também, o conceito de direitos do ser humano, assim entendidos como aqueles direitos que decorrem da própria natureza de ser humano, independentemente de raça, credo, orientação sexual, nacionalidade.

Se a democracia é o governo do povo pelo povo e seu exercício deve ser feito por meio de representantes, foi-se estabelecendo, também, formas de exercício desse poder  e se chegou ao que hoje se denomina tripartição de poderes. O Poder, que é uno, é exercido por três Poderes distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário.A tripartição de Poderes não é idêntica em todos os lugares, nem as atribuições de cada Poder, mas em linhas gerais, a ideia é a mesma e vale para todos.

No Brasil, o Poder Executivo Administra, o Legislativo elabora leis (sentido lato) e o Judiciário julga. Nenhuma das atribuições de cada Poder é exercida de forma exclusiva. O Legislativo julga o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, o Executivo julga quando preside os Procedimentos Administrativos e legisla ao editar regulamentos e resoluções, além de Medidas Provisórias, o Judiciário legisla ao editar seus Regimentos Internos e todos os poderes administram seus quadros de servidores e respectivos orçamentos.

Contudo, quando se diz que o Supremo está legislando, diz-se no sentido de que estaria usurpando a função do Poder Legislativo, ao estabelecer regras gerais de conduta que, a princípio, deveriam ser estabelecidas pelo Poder que legisla.

De fato. Algumas das decisões do Supremo tem natureza legislativa e devem ser observadas das por todos. Contudo, afirmar que está usurpando as funções do Legislativo não condiz com a verdade e se está esquecendo que essa conduta faz parte das atribuições desse Tribunal.

O Brasil tem uma cultura fundada na Religião Católica e uma população crescente de cristãos evangélicos. Como as religiões em geral fornecem boa  parte do substrato dos costumes e da conduta moral de um povo, suas regras vão se entranhando em uma sociedade e ao longo do tempo podem perder o caráter religioso sem perder seu conteúdo. A moralidade católica, arraigada em nossa cultura e costumes, assim como a moralidade estabelecida pelas Igrejas Evangélicas, faz com que os brasileiros, em sua grande maioria, tenham postura conservadora quando se trata de questões como casamento entre pessoas do mesmo sexo aborto de fetos com anencefalia, duas das questões decididas pelo Supremo e que tiveram efeito contra todos, ou seja, o mesmo efeito de uma lei aprovada pelo Legislativo.

A grande maioria da população manifestaria seu desacordo com a permissão para que pessoas do mesmo sexo se casem ou procedam ao aborto de quaisquer fetos, ainda que portadores de anomalia que inviabilizariam sua vida., se não fosse o policiamento do politicamente correto, que inibe a livre expressão de pensamento e opinião, sob medo de achincalhamento em redes sociais ou publicamente.

É comum, também, que as pessoas desejem que seja ilícito ou mesmo crime, condutas que consideram erradas ou pecado. Daí que quem é contra casamento de pessoas do mesmo sexo ou aborto de fetos com anencefalia, em regra, desejaria que tais condutas fossem proibidas ou, na segunda hipótese, criminalizadas.

Mas o Brasil é um estado laico, apartado de qualquer religião, ainda que garanta a liberdade de culto. Por isso, fundamentos religiosos não podem ser levados em consideração quando se analisa questões como essas duas que apontei acima.

É importante salientar, ainda, que a democracia, tal como praticada em nosso País, tem potencial para se tornar uma ditadura da maioria. E, nessa condição, detém um potencial enorme para oprimir as minorias, inclusive lhes retirando o exercício de direitos que lhe são inerentes em razão da sua condição de seres humanos. E é para evitar essa ditadura da maioria oprimindo a minoria que o Supremo deve atuar, legislando se for o caso.

Considerando que a esmagadora maioria da população brasileira manifesta um conservadorismo originário da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas com relação a costumes e à moral, é intuitivo que elegerá legisladores com o mesmo entendimento. Há legisladores com postura e opiniões diferentes mas, na condição de representantes de uma minoria, não tem condições de neutralizar a ditadura da maioria.  Por isso, a possibilidade de que esses legisladores eleitos por uma maioria que, no fundo, gostaria que casamento entre pessoas do mesmo sexo continuasse proibido e que o aborto de anencéfalos continuasse sendo crime, mantivessem a legislação como antes e muito grande e permitiria a violação do direito dessas duas minorias que, por serem minorias, estariam desamparadas.

Entra em cena a Suprema Corte, chamada a atuar para fazer garantir a essas minorias direitos fundamentais como constituir uma família ou abortar um feto sem condições de vida pós nascimento. A autorização para que pessoas do mesmo sexo se casassem ou para que grávidas de fetos com anencefalia abortassem dificilmente seria dada mediante leis aprovadas por um legislativo que representa a grande maioria conservadora.

Essa postura não é exclusiva do Brasil. A Suprema Corte dos Estados Unidos já atuou assim quando determinou o fim da segregação racial ou decidiu a favor do direito das mulheres a abortarem. O fundamento dessas decisões, também com caráter legislativo, foi a proteção de uma minoria que, sem essa proteção, ficaria à mercê da ditadura da maioria.

Por isso, repetido a frase do início deste post: O Supremo legisla? Sim. E é necessário que assim o seja.

PS1: as ideias para este post foram surgindo durante discussões com meu marido, João Carlos. Mas devo a ele as ideias sobre a função do Supremo na garantia de direitos fundamentais a minorias em oposição à maioria e ao fato de que essa atribuição é exercida pela Suprema Corte dos Estados Unidos há muito tempo. Obrigada e um beijo.

PS2: para ilustra o post, escolhi uma foto do Ministro Teori Zavascki porque admiro sua postura tranquila e ponderada, além da capacidade técnica.