O Deputado Federal Jair Bolsonaro, no plenário da Câmara, falou para a também Deputada, Maria do Rosário: "Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de
estuprador, [...] e eu falei que não ia estuprar você porque você não
merece." O Promotor de Justiça Alexandre Couto Joppert, membro da banca do 34o Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, ao elaborar questão a respeito de estupro com concurso de agentes, disse que aquele a quem incumbiu a conjunção carnal, ficou com "a melhor parte, dependendo da vítima". Sua descrição do crime, ao elaborar a questão, foi: ""Um segura, outro aponta arma, outro guarnece a porta da casa, outro
mantém a conjunção - ficou com a melhor parte, dependendo da vítima -
mantém a conjunção carnal, e o outro fica com o carro ligado para
assegurar a fuga.""
Por conta da fala para Maria do Rosário, Jair Bolsonaro se tornou réu em ação criminal no Supremo Tribunal Federal pois o relator entendeu que sua fala incita a prática do estupro, além de ofender a honra da colega. Já Alexandre Couto Joppert foi afastado da banca do 34o Concurso.
Jair Bolsonaro, em sua defesa no Supremo Tribunal Federal, afirmou que não teve intenção de incitar estupro, que sua fala não diz isso.
O Promotor Alexandre, por sua vez, emitiu nota na qual afirma: "(...) Devo ressaltar que a proferi sem qualquer intenção, mínima que
seja, de patrocinar menosprezo ou desrespeito de gênero".
Citei esses dois exemplos de falas com consequências muito além das que, muito provavelmente, seus autores previam para falar da "Vontade do Texto".
Essa expressão é usada por Umberto Eco em seu livro "Os Limites da Intepretação"* (Editora Perspectiva, 2004), ao lado da vontade do autor e da vontade do leitor. Vontade do autor e vontade do leitor são conceitos quase que intuitivos: a primeira reflete a intenção do autor, o que ele efetivamente quis dizer ao escrever/falar o que escreveu ou falou. A segunda, a intenção do leitor, que extrai do texto o que gostaria que o texto dissesse. Já a intenção do texto é a interpretação que o texto permite aos seus leitores independentemente da vontade do autor ou do leitor. A título de exemplo da vontade do texto, Umberto Eco conta que em uma conferência, uma pessoa lhe perguntou se o personagem Casaubon de O Pêndulo de Foucault havia sido uma referência ao personagem de mesmo nome, de Middlemarch, da George Eliot. Eco respondeu que não. O nome era referência a Isaac Casaubon, estudioso clássico que viveu entre 1559 e 1614. No entanto, ele admitiu à pessoa que o questionou, que seu personagem Casaubon de O Pêndulo de Foucault de fato remetia ao personagem de Middlemarch, não obstante não ter tido nenhuma intenção nesse sentido. Mas é uma expressão da vontade do texto.
Nos dois exemplos de falas que citei no início deste texto, ambos os seus autores insistem que não tiveram a intenção de dizer aquilo que a maioria das pessoas compreendeu. Mas as palavras usadas, independentemente da intenção de cada um deles, permitem que se chegue às interpretações gerais a respeito, pois ambos os textos (falas) assim o querem.
Ao dizer que não estupraria a colega Maria do Rosário porque ela não "merecia", o Deputado Jair Bolsonaro utilizou um termo que, livre de qualquer intenção sua ou de seus ouvintes/leitores, indica que as demais mulheres merecem ser estupradas.
Volto a Umberto Eco. No livro citado, ele define como interpretação literal aquela que vem em primeiro lugar no dicionário ou aquela que um cidadão comum nos dará se lhe perguntarmos o significado de uma palavra. "Merecer", de acordo com a primeira definição dada pela versão online do Dicionário Michaelis é "obter algo por seus méritos" (http://michaelis.uol.com.br/busca?id=D971D). Se digo que uma mulher não obterá algo porque não merece, o texto quer me dizer que se ela o merecesse, obteria esse algo. Se o que ela não merece é ser estuprada porque não tem méritos para tanto, é porque as mulheres que são estupradas o merecem. É essa a vontade do texto. Se foi a vontade do Deputado, na condição de autor, quando o disse, somente ele pode saber. E ele diz que não foi. Se pessoas acham que ele estava sendo eloquente, que na realidade não quis dizer que há mulheres que merecem ser estupradas, trata-se da vontade de cada leitor. Mas o texto, de fato, permite essa interpretação: de que há mulheres que merecem ser estupradas e, outras, não. E essa vontade é livre tanto da vontade do autor quanto da do leitor.
O mesmo se dá com a fala do Promotor de Justiça Alexandre Couto Joppert. Quando afirmou que o partícipe a quem coube a conjunção carnal em um hipotético caso de estupro, ficou com a melhor parte dependendo da vítima, utilizou uma expressão que valora a conjunção carnal no estupro como sendo boa, ou pelo menos melhor do que as funções dos demais partícipes: segurar a mulher, apontar a arma, guarnecer a porta, manter o veículo em funcionamento para facilitar a fuga. Se sua intenção não era "patrocinar menosprezo ou desrespeito", somente ele sabe. Se leitores/ouvintes acham que foi apenas eloquente ou emitiu opinião do ponto de vista do criminoso, é a vontade do leitor. Mas o texto/fala em si permite a interpretação que foi dada pelas pessoas em geral: o Promotor considera que a conjunção carnal no estupro é algo bom e, portanto, foi desrespeitoso com as vítimas de estupro.
É preciso cuidado ao emitirmos uma fala ou redigirmos um texto. As palavras tem vontade própria e a partir do momento de sua emissão fogem ao nosso controle e passam a ter uma vontade própria. Mas quem vai arcar com as consequências da vontade do texto somos nós, seus emissores.